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Revista #16

As asas de Allana

Fotos: Arquivo pessoal

Allana Lichtenfels, moradora do Méier, subúrbio do Rio de Janeiro, é uma bela mulher. Em tempos passados, no entanto, ela já foi o Rick (nome fictício), quando tinha um corpo com o qual não se identificava.
 
Sua mudança para a nova identidade aconteceu após Rick ter sido aprovado na Universidade Federal do Rio de Janeiro, para o curso de artes cênicas na Escola de Belas Artes. Nesse momento da vida, Rick tomou a decisão de tomar hormônios para ficar com curvas femininas e fez dessa mudança na identidade biológica um salto para conquistar sua felicidade, afinal, seu gênero sempre foi o feminino. Nascia ali Allana, sua identidade definitiva. 
“Era como se estivesse usando uma roupa que não me pertencesse”, relata Allana sobre seu corpo, antes da transformação.

Allana é hoje professora da Escola de Artes Técnicas da Faetec de Nova Iguaçu. Ela coleciona em seu currículo de figurinista, trabalhos artísticos como o musical “Canções de Holanda” (que conta a vida de Chico Buarque) e fez parte da equipe de maquiagem e caracterização teatral da escola de samba Estácio de Sá no carnaval 2013. Na televisão, trabalhou no figurino do programa “Detetives da Ciência”, do canal MultiRio. Ela acredita que o apoio da família fez toda a diferença e a ajudou a trilhar um caminho repleto de histórias boas, diferentemente de outros transexuais que, por falta de apoio e pelo preconceito que há no mercado de trabalho, não tiveram outra escolha a não ser a prostituição.
 
Como professora de uma escola que respeita a diversidade, ela usa sua experiência para mostrar que, independentemente de suas origens, todos são capazes de vencer obstáculos e que não precisam aceitar os rótulos impostos pela sociedade. “Ensino aos meus alunos que respeito é bom e todo mundo gosta”, diz. Há alunos que vêem em Allana uma inspiração para driblar o preconceito que sofrem. Allana tem uma relação harmoniosa e de respeito com o pai, com quem mora. Mas nem sempre foi assim. Na pré-adolescência, o comportamento recatado e a fala doce sugeriam que Rick era diferente dos demais meninos. Seu comportamento, rechaçado pelo pai, recebia de sua mãe apoio e amor incondicional. O estereótipo andrógino dava algum conforto, mas ainda não era o que desejava.
 
Durante a infância um tanto conturbada, Allana percebeu que havia algo de diferente em suas  atitudes e gostos, sempre relacionados ao universo feminino. O gosto por bonecas e por brincar de casinha, com fogõezinhos e panelinhas, faziam parte da sua rotina. E ela chegou a escrever ao Papai Noel pedindo "brinquedos de menina”, para se decepcionar com os carrinhos que o bom velhinho deixava na janela do quintal... Seu irmão, ao contrário, dava pulos de felicidade ao encontrar bolas de futebol e pipas entre os presentes de Natal.
 
O apoio da mãe e do irmão talvez teriam bastado para Rick passar definitivamente para o universo feminino. Mas essa redefinição sexual ficou em segundo plano quando sua mãe teve câncer. A prioridade, então, passou a ser o tratamento médico e os planos foram adiados. Foi a aprovação na universidade que fez com que Rick renovasse seus propósitos.
 
Allana diz se sentir bem à vontade com alunos e funcionários na escola em que trabalha. “Jamais sofri qualquer tipo de discriminação no mercado de trabalho”, ela ressalta. Um caso raro e provocador.
 
O próximo desafio já está traçado: mudar o nome para Allana no RG para evitar constrangimentos quando, em público, é chamada pelo nome masculino de batismo.

Boate gay: respeito e diversão para qualquer orientação

Ir a uma boate LGBT, para um heterossexual, era algo muito incomum até há pouco tempo. As pessoas sempre ficavam com pé atrás do que poderia acontecer, se poderiam ser “atacadas” por gays assim que entrassem na boate. Ainda tem quem pense assim. Mas quem decide arriscar acaba se surpreendendo.

Open bar, música boa e liberdade para dançar são alguns dos motivos que levam pessoas heterossexuais a frequentar boates LGBT. E não é apenas a diversão que atrai o público hetero a esses lugares, mas sim o ambiente, onde pessoas com orientações sexuais diferentes convivem muito bem.

Enquanto as meninas podem dançar à vontade sem que um cara fique forçando a barra, os rapazes optam por essas boates porque a maior parte delas oferece bebida open bar e a concorrência para chegar nas meninas é menor. Para os gays, a presença dos heteros não é problema! Alguns, inclusive, levam seus amigos que não partilham da mesma orientação sexual para curtir a balada.  

“Na boate gay, heteros são bem-vindos, não existe preconceito de gays com heterossexuais”, conta Jorge Prado, morador da favela Turco e homossexual. Ele frequenta boates LGBT há quatro anos e diz ter percebido um aumento do público heterossexual nos noites gays do Rio. Para ele, a desconstrução de paradigmas que cercavam a comunidade como a promiscuidade, uso de drogas e contágio com HIV foi um dos grandes motivos que levou o público heterossexual a se sentir mais à vontade de estar e se divertir com gays nas boates. Segundo Jorge, seus amigos sentem uma liberdade maior para dançar e se divertir “e até mesmo atravessar fronteiras (ficar com uma pessoa do mesmo sexo)”, conta. Esse que resolve ir além é visto apenas como “curioso”, “porque não necessariamente quem beija uma pessoa do mesmo sexo é gay”, diz Jorge.

Com o em qualquer lugar, existe diferença de público quando se muda de região. Tem diferença e é notória, segundo Jorge. "Na Zona Sul o público é mais comportado, se cobra uma certa “postura”. Os gays são mais “homenzinhos”. Para dar pinta, ou ser mais "afeminado", só se for estilista ou alguma coisa do tipo. Diferentemente das periferias, onde as pessoas são mais bem aceitas de qualquer forma". As boates dessas regiões têm um público mais estereotipado, conta Jorge, que já frequentou ambos ambientes. Ele caracteriza essas boates como um ambiente “receptivo e mais free”.

É difícil ver o público da Zona Sul na Zona Oeste e vice-versa. A diferença de região acaba sendo um divisor de águas da comunidade homossexual. Alfredo Barcelos é homossexual e já frequentou boates de diversos lugares. Ele é morador da Pedra de Guaratiba, Zona Oeste do Rio, mas já foi em boates da Zona Sul.  Uma coisa legal, segundo ele, é que os gays da Zona Oeste querem parecer com os da Zona Sul, em estilo, cabelo, roupa e o todo o resto. Se for o caso de comprar uma roupa de marca que não seja original, ou tênis, eles compram. “Na Zona Sul eles fazem “a egípcia”: você fala com eles e eles ficam olhando pro lado”.


Muitos heteros que foram a uma boate gay aprovaram. Durante a enquete feita por esta reportagem, várias pessoas relataram o quanto esse público é receptivo e afirmaram que ir a boate LGBT não significa ser gay. Esse é o caso do Nicholas Bastos, 19 anos. Ele é hetero e morador da Glória, bairro da Zona Sul. As boates que frequentou ficam por lá mesmo. Algumas bem conhecidas desse público, como a Le Boy e Cine Ideal. Do seu ponto de vista, não tem mistura do público homossexual feminino com o masculino. As boates também não seriam tão diferentes assim das boates hetero. Assim como em qualquer balada, tem quem vá para dançar, beber ou ficar com pessoas. Para Nicholas o que difere as boates é a liberdade que os frequentadores têm. Um casal gay se beijando em um ambiente hetero, acarretaria muitos problemas. O que já não acontece num estabelecimento LGBT.

Thalles Abreu, 20 anos, é morador da Zona Oeste e frequentou boates LGBT. Ele, que é hetero, foi convidado por um amigo e gostou do ambiente. Thalles confessa que ficou meio receoso no início, mas foi recebido muito bem e tratado como igual. Como muitos heteros em festa gay, ele “chegava” nas meninas e, quando não dava a sorte da pessoa ser hetero, não rolava estresse. Era super bem tratado, trocava contatos e acabava ganhando uma nova amiga. Thalles testemunhou um respeito muito grande e nunca foi cantado nesse ambiente: “quando o cara viu que eu era hetero, nem chegou em mim”.  Ele tem dois motivos que o levam a frequentar essas boates: as meninas solteiras e a facilidade para conhecer pessoas que não estão apenas interessadas no que a outra tem para oferecer. “Em boates heterossexuais, geralmente as pessoas querem que você chegue lá se tiver alguma condição financeira, ou alguma coisa pra dar. Boate gay não tem isso, as pessoas são muito mais tranquilas, dá para conversar direito e o nível cultural é melhor!”, resume ele.

Alfredo já levou vários amigos hetero a boates LGBT, assim como já foi a boates hetero. “Uma coisa que eles sempre falam é que o ambiente é tranquilo”, conta ele, acrescentando que é difícil acontecer briga lá. Houve diferentes reações entre seus amigos hetero em relação a ir à boate. "Os 'super descolados' não se preocupam muito em ir a um lugar com maioria de pessoas gays. Outros ficam receosos e acham que podem ser agarrados a qualquer momento. Já fui com um casal que se soltou e se divertiu muito. Assim como já levei um amigo que ficou preocupado o tempo todo”.

Alfredo já presenciou muitos casos diferentes. Em uma ocasião convidou um casal de amigos para acompanhá-lo à balada gay. De cara, o marido ficou com pé atrás, achando que não tinha muito a ver com ele e preocupado se levaria cantadas. A esposa encarou com tranquilidade. Na hora do ‘vamos ver’, segundo Alfredo, o amigo acabou sendo o rei da noite: “Ele encheu a cara, tirou a camisa, dançou no queijo, deu um show e ninguém o atacou. Foi a noite mais divertida da vida dele, que voltou várias vezes depois disso”.

O preconceito ainda é muito velado, acredita Alfredo. Uma pessoa que diz ter amigos homossexuais, mas não aprova esta orientação sexual, está sendo, de certa forma, preconceituosa. Ir a uma boate gay ajuda a quebrar este estigma. A pessoa sai de lá com um pensamento completamente diferente.

Alfredo cita o caso de um casal de amigos que se conheceu na boate LGBT. O amigo relutou, mas foi e acabou conhecendo sua atual namorada lá. Alfredo foi o pivô do relacionamento pois toda vez que o amigo queria encontrar a garota, ele o chamava para ir à boate. “É bacana quando há essa quebra de preconceito. A pessoa vê que não tem essa de Sodoma e Gomorra e se amarra”, encerra Alfredo.

Dança preconceito, dança

Pensar em grupos de dança ao estilo LGBT é lembrar do Village People mandando seus hits YMCA e Macho Man, é recordar as cenas do filme Priscila, a rainha do deserto. Aqui pertinho, o que logo vem à mente é a coreografia da dançarina Lacraia para a Éguinha Pocotó (MC Serginho) e o Quadradinho de Oito do Bonde das Bonecas (de Brás de Pina).

Um novo grupo de dança tem feito sucesso na favela de Vila Cruzeiro, no Rio de Janeiro. É o Urban Style, criado há aproximadamente um ano, a partir do projeto Atitude Social, da prefeitura da cidade. O grupo tem 20 integrantes, dos quais 15 fixos, entre homens e mulheres, e o dançarino JP Black é o coreógrafo.

Os membros do grupo são jovens e moradores da Vila Cruzeiro e sua ideia principal é combater a homofobia através da dança. Os dançarinos, homossexuais, afirmam sua sexualidade sem medo com a arte e as peças de roupas femininas, como blusas curtas, shorts jeans curtos e meia calça preta ou vermelha.

O figurino é planejado de acordo com a música que será apresentada no dia. A confecção é toda dos próprios integrantes, que compram as peças em brechós e depois customizam. Apesar do estilo de dança incluir hip-hop, street dance e Ragga, roupas mais folgadas e calças não são cogitadas. A ideia é usar roupas apertadas e curtas, características do funk, que o Urban também coreografa, como as músicas do “Show das Poderosas” (da cantora Anitta).

Para o grupo, a dança é vista como uma oportunidade de extravasar e quebrar paradigmas de gênero. Não há diferenças entre homens e mulheres no palco. Todos viram “elas” e dançam até o chão com movimentos flexíveis e despojados. Longe dos holofotes, ao contrário, a diferenciação de papeis existe (é só no palco que eles se vestem de elas). “No dia-a-dia não me visto assim porque tenho medo de constranger as pessoas, mas na dança é permitido extravasar”, diz Bruno Santos, 23 anos, integrante do Urban Style e um dos responsáveis pelo figurino.

Gabriel Godin e Yke Oyile também fazem parte da equipe que produz os modelos usados nas apresentações. Os meninos admitem que, nos últimos meses, estão cogitando adotar figurinos mais ao estilo "homenzinho", com calça militar e chapéu. Para eles, a ideia é quebrar o paradigma de que a roupa tem o poder de definir o que você é, seu gênero e orientação sexual.

O grupo já se apresentou na favela da Nova Brasília, no Complexo do Alemão (evento Funk Consciente); no Morro do Adeus (Estações Culturais) e na Penha (Arena Dicró). Participou também do lançamento da marca Império, criada por Mayke Machado para o projeto da Agência de Redes para Juventude. “Decidi chamá-los por ser um grupo LGBT criado na própria comunidade, articulado por jovens que lutam por respeito e igualdade na favela”, explica Mayke.

Foto: Renato Moura

O Urban Style acredita ser bem aceito pela maioria dos moradores da favela. Sua meta é se apresentar cada vez mais na Vila Cruzeiro, buscando ser reconhecido no próprio território. Se a dança não tiver o poder de mudar a cabeça de muitos que ainda acreditam que existe um modelo “ideal” de identidade sexual, ela poderá colaborar para o processo de auto-aceitação do indivíduo que se considera gay. A dança é um processo de autoconhecimento e coletividade, que facilita a aceitação e o respeito a si mesmo e ao outro.

Tráfico não tem relação direta com homofobia

Foto: Rosilene Miliotti
A discriminação em relação à orientação sexual é um tema bastante falado nos dias de hoje. Mesmo com diversos discursos sobre a tolerância à diversidade, ainda podemos observar inúmeros episódios de homofobia e preconceito na sociedade. Imagina-se que em territórios dominados pelo tráfico de drogas, que geralmente tem o poder de determinar o que é aceito ou não na comunidade, a discriminação seja mais acentuada. Gilmar Santos da Cunha, presidente do grupo Conexão G, ONG voltada ao público LGBT do Complexo da Maré, afirma que a influência do tráfico não tem relação direta com a homofobia, mas, sim, o preconceito que reside na mente das pessoas.

Gilmar e Mauro Lima, vice-presidente do Conexão G, dizem que é difícil afirmar se há diferença de violência contra homossexuais dentro e fora da favela. “Não temos dados se a violência contra homossexuais em favelas aumentou ou diminuiu. Aqui na Maré, onde o Conexão G atua desde 2006, temos percebido através de relatos, que com a migração de traficantes de comunidades com Unidade de Polícia Pacificadora (UPP), tem aumentado o abuso de forma geral e não apenas com a população LGBT. Essas pessoas migram de outros territórios e não tem vínculo com a comunidade e os moradores. E acredito que nem querem esse vínculo porque talvez estejam apenas de passagem”, explica Gilmar.

Para Mauro, a violência contra homossexuais em favelas não tem relação direta com tráfico. Quem sustenta esse tipo de ato discriminatório é o preconceito dos indivíduos. “Me sinto menos vulnerável na Maré, onde trabalho, e em Santa Cruz, bairro em que moro. O sentimento de pertencimento ao lugar nos dá uma sensação de segurança. Ser diferente em um lugar diferente torna o homossexual mais vulnerável. Eu estou mais vulnerável à noite, na Lapa, por exemplo”, completa Mauro, que já foi vitima de violência dentro de uma boate LGBT.

Segundo Relatório sobre Violência Homofóbica no Brasil – um documento elaborado com base nas denúncias sobre violência por opção sexual recebidas por órgãos públicos, principalmente uma central telefônica* divulgada em julho deste ano pela Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República (SDH) –, os casos de violações (que incluem violência física, psicológica e discriminação) contra homossexuais no Brasil cresceram 46,6%, em 2012. Foram contabilizados 9.982 casos de violações contra lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transexuais (LGBTT). A agressão contra homossexuais que mais cresceu entre 2011 e 2012 foram a psicológica, com um salto de 83,2%.

De maneira geral, entre os homossexuais há o sentimento de que falta diálogo e respeito para a construção de uma sociedade menos homofóbica, transfóbica, violenta, machista e sexista. Para Gilmar, existem, sim, casos de violência física contra homossexuais na Maré, mas desde o surgimento do Conexão G, os relatos que chegam até o grupo tem diminuído. “A questão da homossexualidade não é discutida e por isso as pessoas não entendem que o homossexual é um ser humano como outro qualquer. E é engraçado que quando eu ando pela comunidade as pessoas se referem a mim como ‘vocês’. Mas não são ‘vocês’, somos nós. Parece que somos seres que viemos do espaço e aterrizamos aqui e que não fazemos parte da humanidade”, brinca.
 
Opressão familiar e social

“Percebo que as pessoas só caracterizam a homofobia quando há agressão física, mas devemos olhar como agressão mais latente, as vivenciadas no seio familiar. As agressões verbais, psicológicas e sociais são as mais preocupantes já que as consequências podem refletir na vida desse indivíduo”, diz Mauro.

Gilmar revela que, quando tinha 12 anos, sofreu agressões físicas de um garoto de 10. “Eu passava na rua e esse menino sempre me batia porque eu me assumi gay no início da adolescência. E há pouco tempo, reencontrei aquele menino que me batia. Conversamos sobre homossexualidade, ele disse que não entendia o que era ser gay e hoje ele gosta de variar e ter relações sexuais com homossexuais.”, revela.

Entretanto, as travestis e as transexuais sofrem ainda mais violência. Gilmar justifica o excesso de violência porque elas fogem dos padrões da lésbica e do gay. “Há uma leitura de que você pode ser gay desde que não se vista de mulher. Ainda há o pensamento de que as travestis querem se tornar mulheres. O que não é verdade, elas não querem ser mulheres e sabem que nunca serão. Quando as transexuais fazem a readequação genital é porque mentalmente ela já não se identifica com aquele corpo de homem. Elas querem ser livres para colocar seios, saia, até porque para muitos homens isso é um fetiche”.

Homossexuais x religião               
    

Há uma linha de tensão entre os homossexuais e a Igreja, na qual Gilmar afirma que é preciso respeito. Se a bíblia diz que Deus ama a todos, por que nem sempre quem prega o que está escrito nela consegue vivenciar? Para Gilmar, um dos pecados do movimento LGBT é falar apenas para os seus pares e não dialogar com quem pensa diferente. “Eu, enquanto instituição, não posso sentar apenas com mulheres porque elas são feministas e se aproximam da minha luta. Eu tenho que conversar com os evangélicos, com os pastores, padres, políticos, com vários representantes”.

Gilmar, que chegou a ser coroinha na igreja católica da comunidade Nova Holanda, hoje é espírita. Para ele, a igreja católica aceita o pecador, mas não aceita o pecado. “Aí você me pergunta: você foi reprimido na igreja? A todo momento eu sou reprimido. Chegou um tempo na minha vida que eu identifiquei que não era mais aquilo que eu queria, que eu não vou ficar me reprimindo e me escondendo por conta de dogmas e regras. Então procurei outro espaço que me acolhesse e onde eu pudesse me encontrar com Deus e o mundo espiritual, mas que não me reprimisse".

Ele chama atenção e considera que no território da Maré é muito visível esse preconceito através da religião. “Antigamente a Maré tinha vários terreiros e hoje a gente não tem nenhum. Será que as pessoas deixaram de ser espíritas ou foi a proliferação das igrejas evangélicas? Para mim, pelo fato da comunidade viver à margem de toda a sociedade e nas questões sociais não ter apoio do governo, a não ser das ONGs, eu acredito que a igreja acaba ocupando esse espaço e as pessoas se deixam levar. Se o pastor diz que ser homossexual não é coisa de Deus, as pessoas que estão ouvindo acabam acreditando naquilo como única verdade”.

*Para denunciar abusos contra os Direitos Humanos, inclusive contra LGBTs, use a central telefônica criada pela SDH, o "Disque 100".

A militância da aceitação em Nova Iguaçu

Nos últimos 30 anos, mais de 3.500 homossexuais foram executados no Brasil, vítimas da homofobia. Ainda existe muita rejeição na sociedade à diversidade sexual. E, do outro lado, vários grupos e organizações buscam mudar esta realidade. Nas periferias, a situação é mais assustadora.


Em Nova Iguaçu, Baixada Fluminense, os grupos 28 de junho e Com Causa militam pela diversidade sexual e reconhecem: o maior desafio continua a ser a violência. Na noite de 30 de março de 2013, um homossexual foi baleado na saída de uma boate na rua da Lama. Um grupo em um carro passou atirando. O caso chegou a ser registrado na delegacia, mas ficou por isso mesmo.
 
Foto: Arquivo pessoalEugênio Ibiapino é diretor do grupo 28 de Junho (homenagem à data do Dia Mundial do Orgulho LGBT) e um dos coordenadores da Parada LGBT de Nova Iguaçu, que chega a sua 10ª edição em outubro deste ano. Militante da defesa dos direitos dos homossexuais na Baixada, ele diz: “Lutamos por uma sociedade em que não mais seja necessário que os negros, índios, homossexuais e mulheres tenham apenas um dia especial no ano para denunciar o preconceito e discriminação de que são vítimas”. E acrescenta: “O grupo iguaçuano busca a cidadania plena. Não aceitamos que queiram nos “curar ou “converter”.
 
Pedro Oliveira, militante e articulador CRDH da Com Causa, acredita que é preciso, antes de tudo, aceitação. “Somos vítimas de preconceito cotidianamente. Ainda é difícil uma colocação profissional para transexual, por exemplo. Esperamos que a sociedade leve nossa militância mais a sério, porque vivemos tempos difíceis de intolerância e um alto grau de homofobia em toda Baixada Fluminense. Por estarmos na periferia, muitas vezes os casos de homofobia que sofremos não são levados a sério”, conta
 
Vulgaridade, não. Identidade!
 
Lutando contra a intolerância, Pedro menciona a colocação profissional de travestis e transgêneros. “Quando você vai ao consultório médico é um travesti que te atende? Onde estão essas pessoas? Apresentar os documentos já abre uma oportunidade de constrangimento. Há meninos e meninas trans que têm uma formação ótima, mas não tem espaço para eles no mercado. Tudo bem a pessoa se prostituir porque quer, o problema está em ir para a esquina porque não tem outra opção”, diz Pedro.                                              
 
Sobre as travestis, Pedro admite: “Eu mesmo sou gay e confesso que não entendia muito bem o motivo do cara colocar um vestido. Me perguntava: Pra quê isso, hein?  Depois que fui entender que não é uma questão de escolha. O indivíduo se olha no espelho e não se sente feliz, não se reconhece. A luta é por ser aquilo que é, sem restrição. Isso é um direito humano. Não se trata de vulgaridade e sim de identidade”.
 
Nova Iguaçu e a Parada LGBT

A Parada LGBT é um acontecimento político em que se reivindicam direitos e também um momento de celebração. Geralmente quem organiza o evento são movimentos sociais, principalmente os LGBTs. Em Nova Iguaçu, ela acontece duas vezes ao ano, no centro de cidade e em Cabuçu, conhecida como “periferia da periferia”, onde a população LGBT é bem grande.
 
O grupo 28 de Junho é um dos organizadores da Parada. Em 2013, ela acontecerá em outubro, na Via Light. “Para comemorar a 10ª edição do evento, faremos também uma grande ação social, além da realização de shows. A parada tem um clima festivo, mas o objetivo principal é a luta contra a violência e o preconceito aos gays. Mas, antes disso, em junho, foi comemorada a Semana da Diversidade LGBT, com exibição de filmes com tema sobre homossexualidade, palestras e várias outras atividades,” conta Eugenio.
 
As leis não se aplicam na periferia
 
Infelizmente só existem leis no âmbito estadual, nenhuma especifica para o município de Nova Iguaçu. No Rio de Janeiro, existe o Rio Sem Homofobia, que visa ao enfrentamento da homofobia e da transfobia e promove a cidadania da população LGBT com Centros de Cidadania LGBT.
 
“Seria perfeito se as leis atravessassem a Linha Vermelha e chegassem aqui na Baixada. Quando o lugar tem pouca visibilidade é mais difícil aplicar punição. As leis existem para a Baixada, mas só no papel. Uma coisa é uma travesti ser esfaqueada na rua Nossa Senhora de Copacabana, em Copacabana, outra é ser esfaqueada na avenida Marechal Floriano Peixoto em Nova Iguaçu”, finaliza Pedro.

#16 Diversidade Sexual

Pode ser comum, mas não é natural parar para pensar sobre o convívio com a diversidade sexual em favelas e periferias brasileiras.

Pode ser comum, mas não é natural ouvir a voz e a experiência de pessoas que decidiram orientar sua identidade pelo autorrespeito.

Pode ser comum, mas não é natural prestar atenção na mudança de cena cultural produzida por artistas com orgulho de si.

Pode ser comum, mas não é natural imaginar a força do preconceito quando o estigma sobre a sexualidade se soma à pobreza, à etnia ou ao local de moradia.
 
Pode ser comum, mas não é natural... é o bordão atual de quem diz “não tenho preconceito, mas”.
 
Nesta edição, os correspondentes do Viva Favela escolheram os temas que lhes pareciam mais próximos, ou urgentes. E escreveram, descreveram e interpretaram o que viram e ouviram. Quanto mais próximos daqueles que consideramos “outros”, mais perto chegamos dos outros possíveis que há dentro de cada um de nós.

Este número da revista é uma modesta iniciativa para que a diversidade sexual seja reconhecida como um dos fundamentos da riqueza cultural da nossa espécie.

Outras contribuições serão sempre bem vindas.


 
Identidades líquidas
Quando a orientação sexual fala mais alto

As asas de Allana
Guilherme Junior | Vila Kennedy | RJ

Retificação
Karine Carvalho | Centro | PR

Bissexual*, sim senhor
Renan Schuindt | Costa Barros | RJ
 
Entretenimento engajado
Da arte de ser diferente

Um beijo pras travestis
Rodrigo Galdino | Juiz de Fora | MG

Dança preconceito, dança
Thamyra Thâmara | Complexo do Alemão | RJ

Boate gay: respeito e diversão para qualquer orientação
Letícia Rocha | Nova Iguaçu | RJ
 
Direitos e organização
Preconceito e violência são o desafio principal

A militância da aceitação em Nova Iguaçu
Juliana Portella | Nova Iguaçu | RJ

Tráfico não tem relação direta com homofobia
Rosilene Miliotti | Complexo da Maré | RJ
 

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