Dia

setembro 11, 2013

As asas de Allana

Fotos: Arquivo pessoal

Allana Lichtenfels, moradora do Méier, subúrbio do Rio de Janeiro, é uma bela mulher. Em tempos passados, no entanto, ela já foi o Rick (nome fictício), quando tinha um corpo com o qual não se identificava.
 
Sua mudança para a nova identidade aconteceu após Rick ter sido aprovado na Universidade Federal do Rio de Janeiro, para o curso de artes cênicas na Escola de Belas Artes. Nesse momento da vida, Rick tomou a decisão de tomar hormônios para ficar com curvas femininas e fez dessa mudança na identidade biológica um salto para conquistar sua felicidade, afinal, seu gênero sempre foi o feminino. Nascia ali Allana, sua identidade definitiva. 
“Era como se estivesse usando uma roupa que não me pertencesse”, relata Allana sobre seu corpo, antes da transformação.

Allana é hoje professora da Escola de Artes Técnicas da Faetec de Nova Iguaçu. Ela coleciona em seu currículo de figurinista, trabalhos artísticos como o musical “Canções de Holanda” (que conta a vida de Chico Buarque) e fez parte da equipe de maquiagem e caracterização teatral da escola de samba Estácio de Sá no carnaval 2013. Na televisão, trabalhou no figurino do programa “Detetives da Ciência”, do canal MultiRio. Ela acredita que o apoio da família fez toda a diferença e a ajudou a trilhar um caminho repleto de histórias boas, diferentemente de outros transexuais que, por falta de apoio e pelo preconceito que há no mercado de trabalho, não tiveram outra escolha a não ser a prostituição.
 
Como professora de uma escola que respeita a diversidade, ela usa sua experiência para mostrar que, independentemente de suas origens, todos são capazes de vencer obstáculos e que não precisam aceitar os rótulos impostos pela sociedade. “Ensino aos meus alunos que respeito é bom e todo mundo gosta”, diz. Há alunos que vêem em Allana uma inspiração para driblar o preconceito que sofrem. Allana tem uma relação harmoniosa e de respeito com o pai, com quem mora. Mas nem sempre foi assim. Na pré-adolescência, o comportamento recatado e a fala doce sugeriam que Rick era diferente dos demais meninos. Seu comportamento, rechaçado pelo pai, recebia de sua mãe apoio e amor incondicional. O estereótipo andrógino dava algum conforto, mas ainda não era o que desejava.
 
Durante a infância um tanto conturbada, Allana percebeu que havia algo de diferente em suas  atitudes e gostos, sempre relacionados ao universo feminino. O gosto por bonecas e por brincar de casinha, com fogõezinhos e panelinhas, faziam parte da sua rotina. E ela chegou a escrever ao Papai Noel pedindo "brinquedos de menina”, para se decepcionar com os carrinhos que o bom velhinho deixava na janela do quintal... Seu irmão, ao contrário, dava pulos de felicidade ao encontrar bolas de futebol e pipas entre os presentes de Natal.
 
O apoio da mãe e do irmão talvez teriam bastado para Rick passar definitivamente para o universo feminino. Mas essa redefinição sexual ficou em segundo plano quando sua mãe teve câncer. A prioridade, então, passou a ser o tratamento médico e os planos foram adiados. Foi a aprovação na universidade que fez com que Rick renovasse seus propósitos.
 
Allana diz se sentir bem à vontade com alunos e funcionários na escola em que trabalha. “Jamais sofri qualquer tipo de discriminação no mercado de trabalho”, ela ressalta. Um caso raro e provocador.
 
O próximo desafio já está traçado: mudar o nome para Allana no RG para evitar constrangimentos quando, em público, é chamada pelo nome masculino de batismo.

Boate gay: respeito e diversão para qualquer orientação

Ir a uma boate LGBT, para um heterossexual, era algo muito incomum até há pouco tempo. As pessoas sempre ficavam com pé atrás do que poderia acontecer, se poderiam ser “atacadas” por gays assim que entrassem na boate. Ainda tem quem pense assim. Mas quem decide arriscar acaba se surpreendendo.

Open bar, música boa e liberdade para dançar são alguns dos motivos que levam pessoas heterossexuais a frequentar boates LGBT. E não é apenas a diversão que atrai o público hetero a esses lugares, mas sim o ambiente, onde pessoas com orientações sexuais diferentes convivem muito bem.

Enquanto as meninas podem dançar à vontade sem que um cara fique forçando a barra, os rapazes optam por essas boates porque a maior parte delas oferece bebida open bar e a concorrência para chegar nas meninas é menor. Para os gays, a presença dos heteros não é problema! Alguns, inclusive, levam seus amigos que não partilham da mesma orientação sexual para curtir a balada.  

“Na boate gay, heteros são bem-vindos, não existe preconceito de gays com heterossexuais”, conta Jorge Prado, morador da favela Turco e homossexual. Ele frequenta boates LGBT há quatro anos e diz ter percebido um aumento do público heterossexual nos noites gays do Rio. Para ele, a desconstrução de paradigmas que cercavam a comunidade como a promiscuidade, uso de drogas e contágio com HIV foi um dos grandes motivos que levou o público heterossexual a se sentir mais à vontade de estar e se divertir com gays nas boates. Segundo Jorge, seus amigos sentem uma liberdade maior para dançar e se divertir “e até mesmo atravessar fronteiras (ficar com uma pessoa do mesmo sexo)”, conta. Esse que resolve ir além é visto apenas como “curioso”, “porque não necessariamente quem beija uma pessoa do mesmo sexo é gay”, diz Jorge.

Com o em qualquer lugar, existe diferença de público quando se muda de região. Tem diferença e é notória, segundo Jorge. "Na Zona Sul o público é mais comportado, se cobra uma certa “postura”. Os gays são mais “homenzinhos”. Para dar pinta, ou ser mais "afeminado", só se for estilista ou alguma coisa do tipo. Diferentemente das periferias, onde as pessoas são mais bem aceitas de qualquer forma". As boates dessas regiões têm um público mais estereotipado, conta Jorge, que já frequentou ambos ambientes. Ele caracteriza essas boates como um ambiente “receptivo e mais free”.

É difícil ver o público da Zona Sul na Zona Oeste e vice-versa. A diferença de região acaba sendo um divisor de águas da comunidade homossexual. Alfredo Barcelos é homossexual e já frequentou boates de diversos lugares. Ele é morador da Pedra de Guaratiba, Zona Oeste do Rio, mas já foi em boates da Zona Sul.  Uma coisa legal, segundo ele, é que os gays da Zona Oeste querem parecer com os da Zona Sul, em estilo, cabelo, roupa e o todo o resto. Se for o caso de comprar uma roupa de marca que não seja original, ou tênis, eles compram. “Na Zona Sul eles fazem “a egípcia”: você fala com eles e eles ficam olhando pro lado”.


Muitos heteros que foram a uma boate gay aprovaram. Durante a enquete feita por esta reportagem, várias pessoas relataram o quanto esse público é receptivo e afirmaram que ir a boate LGBT não significa ser gay. Esse é o caso do Nicholas Bastos, 19 anos. Ele é hetero e morador da Glória, bairro da Zona Sul. As boates que frequentou ficam por lá mesmo. Algumas bem conhecidas desse público, como a Le Boy e Cine Ideal. Do seu ponto de vista, não tem mistura do público homossexual feminino com o masculino. As boates também não seriam tão diferentes assim das boates hetero. Assim como em qualquer balada, tem quem vá para dançar, beber ou ficar com pessoas. Para Nicholas o que difere as boates é a liberdade que os frequentadores têm. Um casal gay se beijando em um ambiente hetero, acarretaria muitos problemas. O que já não acontece num estabelecimento LGBT.

Thalles Abreu, 20 anos, é morador da Zona Oeste e frequentou boates LGBT. Ele, que é hetero, foi convidado por um amigo e gostou do ambiente. Thalles confessa que ficou meio receoso no início, mas foi recebido muito bem e tratado como igual. Como muitos heteros em festa gay, ele “chegava” nas meninas e, quando não dava a sorte da pessoa ser hetero, não rolava estresse. Era super bem tratado, trocava contatos e acabava ganhando uma nova amiga. Thalles testemunhou um respeito muito grande e nunca foi cantado nesse ambiente: “quando o cara viu que eu era hetero, nem chegou em mim”.  Ele tem dois motivos que o levam a frequentar essas boates: as meninas solteiras e a facilidade para conhecer pessoas que não estão apenas interessadas no que a outra tem para oferecer. “Em boates heterossexuais, geralmente as pessoas querem que você chegue lá se tiver alguma condição financeira, ou alguma coisa pra dar. Boate gay não tem isso, as pessoas são muito mais tranquilas, dá para conversar direito e o nível cultural é melhor!”, resume ele.

Alfredo já levou vários amigos hetero a boates LGBT, assim como já foi a boates hetero. “Uma coisa que eles sempre falam é que o ambiente é tranquilo”, conta ele, acrescentando que é difícil acontecer briga lá. Houve diferentes reações entre seus amigos hetero em relação a ir à boate. "Os 'super descolados' não se preocupam muito em ir a um lugar com maioria de pessoas gays. Outros ficam receosos e acham que podem ser agarrados a qualquer momento. Já fui com um casal que se soltou e se divertiu muito. Assim como já levei um amigo que ficou preocupado o tempo todo”.

Alfredo já presenciou muitos casos diferentes. Em uma ocasião convidou um casal de amigos para acompanhá-lo à balada gay. De cara, o marido ficou com pé atrás, achando que não tinha muito a ver com ele e preocupado se levaria cantadas. A esposa encarou com tranquilidade. Na hora do ‘vamos ver’, segundo Alfredo, o amigo acabou sendo o rei da noite: “Ele encheu a cara, tirou a camisa, dançou no queijo, deu um show e ninguém o atacou. Foi a noite mais divertida da vida dele, que voltou várias vezes depois disso”.

O preconceito ainda é muito velado, acredita Alfredo. Uma pessoa que diz ter amigos homossexuais, mas não aprova esta orientação sexual, está sendo, de certa forma, preconceituosa. Ir a uma boate gay ajuda a quebrar este estigma. A pessoa sai de lá com um pensamento completamente diferente.

Alfredo cita o caso de um casal de amigos que se conheceu na boate LGBT. O amigo relutou, mas foi e acabou conhecendo sua atual namorada lá. Alfredo foi o pivô do relacionamento pois toda vez que o amigo queria encontrar a garota, ele o chamava para ir à boate. “É bacana quando há essa quebra de preconceito. A pessoa vê que não tem essa de Sodoma e Gomorra e se amarra”, encerra Alfredo.

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