Bissexual*, sim senhor
É com essa frase que Carine Silva, moradora de Manguinhos, expõe seu pensamento sobre sua orientação sexual. Ela é uma jovem (21 anos) operadora de telemarketing no Centro do Rio de Janeiro, muito decidida e cheia de vontade de conscientizar o mundo de que a bissexualidade é uma escolha como qualquer outra, e que, quando feita com sinceridade, proporciona o melhor da vida.
"Aos 13 anos conheci uma menina na escola. Ela já era bissexual, mas ninguém sabia. Seus pais eram católicos e tinham até cargo na igreja. Isso fez com que a ela se sentisse reprimida por anos. Eu estava muito curiosa pra saber como era ficar com meninas e acabei gostando dela, mas não tive coragem de falar. Quando fiz 15 anos, não consegui mais esconder a vontade. Falei tudo o que sentia mas ela não correspondeu. Fui ficando com meninos, até que tive a minha primeira experiência sexual com uma mulher aos 18 anos", revela.
Carine teve o mesmo problema que sua amiga. Seu pai, o pastor evangélico Antônio Silva, de 57 anos, não via com bons olhos esse "tipo de coisa":
- Eu comentava sobre a bissexualidade na igreja, sem imaginar que dentro de casa tínhamos alguém com esta escolha. Não posso condenar, mas não acredito que esse seja o caminho certo. Porém, cada um faz aquilo que bem entender.
A psicóloga Ivanir Santos diz que “a pressão sofrida por conta da religião é algo que pode atrapalhar muito o desenvolvimento do indivíduo, principalmente quando a família também não aceita". Ela ainda faz um alerta em relação à idade com que as pessoas estão “se descobrindo”: "Hoje é comum que um adolescente de treze anos já faça suas escolhas, principalmente sobre sexualidade, que é algo que nos acompanha desde o nascimento. Essa idade é uma fase onde se fantasia muito, porém, também é uma fase de descobertas. É preciso conversar e expor as ideias".
Marcelo Cavalcanti tem 29 anos e é morador de Ramos. Ele conta como foi sua experiência ao contar para sua família sobre sua orientação sexual. "Com 19 anos comecei a namorar um rapaz de 30. Eu estava muito feliz mas faltava algo. Percebi que o que me limitava era meu próprio medo. Conversei com meu pai e minha mãe e, quando terminei de falar, eles me abraçaram e me deram total apoio para ser feliz".
O caso de Marcelo mostra como aceitação e apoio são fundamentais para que a felicidade seja completa. Quando fala do medo que sentia, Marcelo se refere ao medo que tinha dos pais por conta dele ter uma namorada. Para ele, seus pais jamais entenderiam a situação. "Imagina, seu filho tem uma namorada há três anos e um belo dia resolve dizer que também tem um namorado. Isso causa um choque enorme na cabeça das pessoas, não é fácil compreender, mas também não é fácil assumir isso diante dos seus pais", comenta.
A preocupação de Marcelo hoje é outra. O rapaz tem uma filha de três anos, fruto de um relacionamento que terminou há um ano. "A mãe da minha filha sabe que sou bissexual e sempre respeitou minha orientação. Quando ela engravidou, nos éramos namorados, então alugamos uma casinha e fomos esperar pelo nascimento da nossa filha". Entre idas e vindas, o tempo foi passando até que o relacionamento acabou. "Mesmo estando com minha companheira, eu ficava com um rapaz. Ele frequentava nossa casa e nunca houve conflito por conta disso. O fim se deu por uma questão de afinidade mesmo".
Para Marcelo, a maior dificuldade será contar para sua filha sobre sua orientação. "Esse momento vai chegar, vou me abrir com ela no momento certo, mas confesso que não será simples. Tenho medo, novamente a insegurança me rodeia, mas ela vai acabar entendendo".
Retificação
O nome estava escrito certo no documento que entregou logo no primeiro atendimento. O documento era uma decisão judicial de retificação de nome, para usar enquanto a Certidão de Nascimento, RG, CPF, Carteira de Habilitação, Carteira de Trabalho, conta de luz, TV a cabo, condomínio e, claro, o cadastro do Sistema Único de Saúde (SUS) não estivessem atualizados. “Se era para ler a minha ficha antiga, porque tive que ficar respondendo a um cadastro? Falta de consideração com o cidadão. Carmen é o nome verdadeiro. Eu luto e busco respeito para a minha identidade”, pensa para si enquanto tenta alcançar a enfermeira.
Durante a caminhada os pensamentos de fúria se amenizam. Carmen dirige-se ao balcão e diz quase sussurrando: “Sou o paciente que chamaram”. A afirmação é um chacoalhão em ambas. A funcionária tem um segundo de ausência, olha para quase todos os lodos, menos nos olhos da transexual Carmen. Colegas haviam mencionado situações semelhantes. Colegas da paciente e da enfermeira.
A enfermeira cora as bochechas enquanto dá um visto na prancheta. O episódio é constrangedor. Por falta de atenção de alguém, a ficha veio incompleta e ela terá que refazer todas as perguntas. Percebe que a paciente está impaciente. Dali a pouco, o médico a chamaria e os dados precisavam estar corretos. O constrangimento não veio porque chamou um homem e veio uma mulher, e sim, por ter que refazer o trabalho. A curiosidade veio, claro! Mas o tempo é escasso, há outras pessoas a atender já que ela orienta os pacientes de seis especialidades do setor.
“Ah sim!”, exclama a enfermeira, “teremos de preencher os dados antes de encaminhá-la ao médico clínico geral. Não há muita informação, apenas Reinaldo Carvalho e idade”. À sua frente, Carmen tem que assumir, contra a sua vontade, a identidade ganha de seus pais há 35 anos. Aquele nome, que lembrava apenas o esquecido, ela não reconhecia, não incorporava mais. Dor por um lado, força por outro. Se aquele nome não lhe dizia mais nada, o processo de alteração civil fazia todo sentido! “Não me agrada em nada essa situação”, Carmen pensou. Estava lá toda a informação que evitaria o constrangimento. Estava lá, desde o atendimento anterior.
Para Carmen aquele nome não representava, nem significava nada. Foi escolhido pelos pais quando nasceu e ponto. Ela se sentia feminina, tinha escolhido um novo nome. Não era Reinaldo, e sim Carmen. Cedo na vida as transexuais sentem que se tornou insuportável carregar um nome que não as reflete. Independentemente de qualquer situação que viesse a passar! Com Carmen aconteceu desde os 12 anos de idade, quando o “eu” masculino deixou de existir. A cópia da declaração com a alteração do nome estava no maço de papéis na mão da enfermeira, sim, mas não de maneira clara, a informação estava no meio do papel e, assim, sem a atenção dos olhos, poderia mesmo passar despercebida. “Fazer o quê?”.
Desejo
Um dia, ela ouviu de alguém: “Os cidadãos têm esse direito de requerer a retificação civil, tudo por meio de processo e decisão judicial. Com cirurgia de mudança de sexo o processo é mais rápido”. Ela agarrou a oportunidade de aliviar as angústias que a forçavam a não assumir a identidade que queria. Requereu, esperou e recebeu a declaração de alteração. Por isso os constrangimentos eram mais profundos e as cicatrizes, amargas. “Uma questão de respeito! Dá para ver que a enfermeira não tem culpa e muito menos teve a intenção de me ferir. Mas promover hoje esse pensamento, às sete da manhã?! Foi como cutucar uma lembrança esquecida”, explica Carmen para seu consciente. Por que isso a fere tanto? Ela sabe.
“Se não mostrarmos o quanto nos afeta, vai ser sempre assim. Errou, refaz. Eu lembro das violações nos meus direitos, da busca da minha dignidade e de assumir quem realmente sou, na família, com amigos, nos espaços que frequento. Foi um esforço constante. E agora tenho o reconhecimento judicial da minha identidade social, nome e gênero”.
Enquanto os pensamentos percorriam histórias, experiências e a constante afirmação de Carmen, a enfermeira desviava os olhos, com a cabeça recheada de balões de insatisfação. Mesmo sendo da área da saúde e curiosa para descobrir “as pessoas pelas pessoas”, não se permitia, ou faltava tempo para entrar em maiores compreensões. Seguindo os padrões seria mais fácil de organizar depois, preenchendo os relatórios que surgem às pressas.
Se ela começasse um diálogo, poderiam aparecer muitos assuntos relevantes para as duas: gênero, retificação de nome, situação psicológica e corporal, identidade privada e pública. Porém, as circunstâncias não as aproximaram. E Carmen, querendo mais que nunca sair daquela situação, apenas respondeu: “eu espero no saguão? Ou aqui?”
A enfermeira perguntou questões gerais da ficha incompleta, resolvidas com um simples “sim” e encaminhou a paciente direto à triagem, para medir a pressão e a febre.
Depoimento captado pelo Núcleo de Direitos Humanos e Cidadania LGBT – Programa “Educação sem Homofobia”
Referências:
http://www.ascom.ufg.br/pages/34581
http://igay.ig.com.br/2013-06-12/transexuais-quero-ser-mulher-tambem-no-meu-rg.html
Na lei:
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L6015original.htm
As asas de Allana

Allana Lichtenfels, moradora do Méier, subúrbio do Rio de Janeiro, é uma bela mulher. Em tempos passados, no entanto, ela já foi o Rick (nome fictício), quando tinha um corpo com o qual não se identificava.
Sua mudança para a nova identidade aconteceu após Rick ter sido aprovado na Universidade Federal do Rio de Janeiro, para o curso de artes cênicas na Escola de Belas Artes. Nesse momento da vida, Rick tomou a decisão de tomar hormônios para ficar com curvas femininas e fez dessa mudança na identidade biológica um salto para conquistar sua felicidade, afinal, seu gênero sempre foi o feminino. Nascia ali Allana, sua identidade definitiva.
Allana é hoje professora da Escola de Artes Técnicas da Faetec de Nova Iguaçu. Ela coleciona em seu currículo de figurinista, trabalhos artísticos como o musical “Canções de Holanda” (que conta a vida de Chico Buarque) e fez parte da equipe de maquiagem e caracterização teatral da escola de samba Estácio de Sá no carnaval 2013. Na televisão, trabalhou no figurino do programa “Detetives da Ciência”, do canal MultiRio. Ela acredita que o apoio da família fez toda a diferença e a ajudou a trilhar um caminho repleto de histórias boas, diferentemente de outros transexuais que, por falta de apoio e pelo preconceito que há no mercado de trabalho, não tiveram outra escolha a não ser a prostituição.

Durante a infância um tanto conturbada, Allana percebeu que havia algo de diferente em suas atitudes e gostos, sempre relacionados ao universo feminino. O gosto por bonecas e por brincar de casinha, com fogõezinhos e panelinhas, faziam parte da sua rotina. E ela chegou a escrever ao Papai Noel pedindo "brinquedos de menina”, para se decepcionar com os carrinhos que o bom velhinho deixava na janela do quintal... Seu irmão, ao contrário, dava pulos de felicidade ao encontrar bolas de futebol e pipas entre os presentes de Natal.
O apoio da mãe e do irmão talvez teriam bastado para Rick passar definitivamente para o universo feminino. Mas essa redefinição sexual ficou em segundo plano quando sua mãe teve câncer. A prioridade, então, passou a ser o tratamento médico e os planos foram adiados. Foi a aprovação na universidade que fez com que Rick renovasse seus propósitos.
Allana diz se sentir bem à vontade com alunos e funcionários na escola em que trabalha. “Jamais sofri qualquer tipo de discriminação no mercado de trabalho”, ela ressalta. Um caso raro e provocador.
O próximo desafio já está traçado: mudar o nome para Allana no RG para evitar constrangimentos quando, em público, é chamada pelo nome masculino de batismo.
Boate gay: respeito e diversão para qualquer orientação
Open bar, música boa e liberdade para dançar são alguns dos motivos que levam pessoas heterossexuais a frequentar boates LGBT. E não é apenas a diversão que atrai o público hetero a esses lugares, mas sim o ambiente, onde pessoas com orientações sexuais diferentes convivem muito bem.
Enquanto as meninas podem dançar à vontade sem que um cara fique forçando a barra, os rapazes optam por essas boates porque a maior parte delas oferece bebida open bar e a concorrência para chegar nas meninas é menor. Para os gays, a presença dos heteros não é problema! Alguns, inclusive, levam seus amigos que não partilham da mesma orientação sexual para curtir a balada.
“Na boate gay, heteros são bem-vindos, não existe preconceito de gays com heterossexuais”, conta Jorge Prado, morador da favela Turco e homossexual. Ele frequenta boates LGBT há quatro anos e diz ter percebido um aumento do público heterossexual nos noites gays do Rio. Para ele, a desconstrução de paradigmas que cercavam a comunidade como a promiscuidade, uso de drogas e contágio com HIV foi um dos grandes motivos que levou o público heterossexual a se sentir mais à vontade de estar e se divertir com gays nas boates. Segundo Jorge, seus amigos sentem uma liberdade maior para dançar e se divertir “e até mesmo atravessar fronteiras (ficar com uma pessoa do mesmo sexo)”, conta. Esse que resolve ir além é visto apenas como “curioso”, “porque não necessariamente quem beija uma pessoa do mesmo sexo é gay”, diz Jorge.
Com o em qualquer lugar, existe diferença de público quando se muda de região. Tem diferença e é notória, segundo Jorge. "Na Zona Sul o público é mais comportado, se cobra uma certa “postura”. Os gays são mais “homenzinhos”. Para dar pinta, ou ser mais "afeminado", só se for estilista ou alguma coisa do tipo. Diferentemente das periferias, onde as pessoas são mais bem aceitas de qualquer forma". As boates dessas regiões têm um público mais estereotipado, conta Jorge, que já frequentou ambos ambientes. Ele caracteriza essas boates como um ambiente “receptivo e mais free”.
É difícil ver o público da Zona Sul na Zona Oeste e vice-versa. A diferença de região acaba sendo um divisor de águas da comunidade homossexual. Alfredo Barcelos é homossexual e já frequentou boates de diversos lugares. Ele é morador da Pedra de Guaratiba, Zona Oeste do Rio, mas já foi em boates da Zona Sul. Uma coisa legal, segundo ele, é que os gays da Zona Oeste querem parecer com os da Zona Sul, em estilo, cabelo, roupa e o todo o resto. Se for o caso de comprar uma roupa de marca que não seja original, ou tênis, eles compram. “Na Zona Sul eles fazem “a egípcia”: você fala com eles e eles ficam olhando pro lado”.
Muitos heteros que foram a uma boate gay aprovaram. Durante a enquete feita por esta reportagem, várias pessoas relataram o quanto esse público é receptivo e afirmaram que ir a boate LGBT não significa ser gay. Esse é o caso do Nicholas Bastos, 19 anos. Ele é hetero e morador da Glória, bairro da Zona Sul. As boates que frequentou ficam por lá mesmo. Algumas bem conhecidas desse público, como a Le Boy e Cine Ideal. Do seu ponto de vista, não tem mistura do público homossexual feminino com o masculino. As boates também não seriam tão diferentes assim das boates hetero. Assim como em qualquer balada, tem quem vá para dançar, beber ou ficar com pessoas. Para Nicholas o que difere as boates é a liberdade que os frequentadores têm. Um casal gay se beijando em um ambiente hetero, acarretaria muitos problemas. O que já não acontece num estabelecimento LGBT.
Thalles Abreu, 20 anos, é morador da Zona Oeste e frequentou boates LGBT. Ele, que é hetero, foi convidado por um amigo e gostou do ambiente. Thalles confessa que ficou meio receoso no início, mas foi recebido muito bem e tratado como igual. Como muitos heteros em festa gay, ele “chegava” nas meninas e, quando não dava a sorte da pessoa ser hetero, não rolava estresse. Era super bem tratado, trocava contatos e acabava ganhando uma nova amiga. Thalles testemunhou um respeito muito grande e nunca foi cantado nesse ambiente: “quando o cara viu que eu era hetero, nem chegou em mim”. Ele tem dois motivos que o levam a frequentar essas boates: as meninas solteiras e a facilidade para conhecer pessoas que não estão apenas interessadas no que a outra tem para oferecer. “Em boates heterossexuais, geralmente as pessoas querem que você chegue lá se tiver alguma condição financeira, ou alguma coisa pra dar. Boate gay não tem isso, as pessoas são muito mais tranquilas, dá para conversar direito e o nível cultural é melhor!”, resume ele.
Alfredo já levou vários amigos hetero a boates LGBT, assim como já foi a boates hetero. “Uma coisa que eles sempre falam é que o ambiente é tranquilo”, conta ele, acrescentando que é difícil acontecer briga lá. Houve diferentes reações entre seus amigos hetero em relação a ir à boate. "Os 'super descolados' não se preocupam muito em ir a um lugar com maioria de pessoas gays. Outros ficam receosos e acham que podem ser agarrados a qualquer momento. Já fui com um casal que se soltou e se divertiu muito. Assim como já levei um amigo que ficou preocupado o tempo todo”.
Alfredo já presenciou muitos casos diferentes. Em uma ocasião convidou um casal de amigos para acompanhá-lo à balada gay. De cara, o marido ficou com pé atrás, achando que não tinha muito a ver com ele e preocupado se levaria cantadas. A esposa encarou com tranquilidade. Na hora do ‘vamos ver’, segundo Alfredo, o amigo acabou sendo o rei da noite: “Ele encheu a cara, tirou a camisa, dançou no queijo, deu um show e ninguém o atacou. Foi a noite mais divertida da vida dele, que voltou várias vezes depois disso”.
O preconceito ainda é muito velado, acredita Alfredo. Uma pessoa que diz ter amigos homossexuais, mas não aprova esta orientação sexual, está sendo, de certa forma, preconceituosa. Ir a uma boate gay ajuda a quebrar este estigma. A pessoa sai de lá com um pensamento completamente diferente.
Alfredo cita o caso de um casal de amigos que se conheceu na boate LGBT. O amigo relutou, mas foi e acabou conhecendo sua atual namorada lá. Alfredo foi o pivô do relacionamento pois toda vez que o amigo queria encontrar a garota, ele o chamava para ir à boate. “É bacana quando há essa quebra de preconceito. A pessoa vê que não tem essa de Sodoma e Gomorra e se amarra”, encerra Alfredo.
Dança preconceito, dança
Um novo grupo de dança tem feito sucesso na favela de Vila Cruzeiro, no Rio de Janeiro. É o Urban Style, criado há aproximadamente um ano, a partir do projeto Atitude Social, da prefeitura da cidade. O grupo tem 20 integrantes, dos quais 15 fixos, entre homens e mulheres, e o dançarino JP Black é o coreógrafo.

O figurino é planejado de acordo com a música que será apresentada no dia. A confecção é toda dos próprios integrantes, que compram as peças em brechós e depois customizam. Apesar do estilo de dança incluir hip-hop, street dance e Ragga, roupas mais folgadas e calças não são cogitadas. A ideia é usar roupas apertadas e curtas, características do funk, que o Urban também coreografa, como as músicas do “Show das Poderosas” (da cantora Anitta).

Gabriel Godin e Yke Oyile também fazem parte da equipe que produz os modelos usados nas apresentações. Os meninos admitem que, nos últimos meses, estão cogitando adotar figurinos mais ao estilo "homenzinho", com calça militar e chapéu. Para eles, a ideia é quebrar o paradigma de que a roupa tem o poder de definir o que você é, seu gênero e orientação sexual.
O grupo já se apresentou na favela da Nova Brasília, no Complexo do Alemão (evento Funk Consciente); no Morro do Adeus (Estações Culturais) e na Penha (Arena Dicró). Participou também do lançamento da marca Império, criada por Mayke Machado para o projeto da Agência de Redes para Juventude. “Decidi chamá-los por ser um grupo LGBT criado na própria comunidade, articulado por jovens que lutam por respeito e igualdade na favela”, explica Mayke.

O Urban Style acredita ser bem aceito pela maioria dos moradores da favela. Sua meta é se apresentar cada vez mais na Vila Cruzeiro, buscando ser reconhecido no próprio território. Se a dança não tiver o poder de mudar a cabeça de muitos que ainda acreditam que existe um modelo “ideal” de identidade sexual, ela poderá colaborar para o processo de auto-aceitação do indivíduo que se considera gay. A dança é um processo de autoconhecimento e coletividade, que facilita a aceitação e o respeito a si mesmo e ao outro.
Tráfico não tem relação direta com homofobia

A discriminação em relação à orientação sexual é um tema bastante falado nos dias de hoje. Mesmo com diversos discursos sobre a tolerância à diversidade, ainda podemos observar inúmeros episódios de homofobia e preconceito na sociedade. Imagina-se que em territórios dominados pelo tráfico de drogas, que geralmente tem o poder de determinar o que é aceito ou não na comunidade, a discriminação seja mais acentuada. Gilmar Santos da Cunha, presidente do grupo Conexão G, ONG voltada ao público LGBT do Complexo da Maré, afirma que a influência do tráfico não tem relação direta com a homofobia, mas, sim, o preconceito que reside na mente das pessoas.
Gilmar e Mauro Lima, vice-presidente do Conexão G, dizem que é difícil afirmar se há diferença de violência contra homossexuais dentro e fora da favela. “Não temos dados se a violência contra homossexuais em favelas aumentou ou diminuiu. Aqui na Maré, onde o Conexão G atua desde 2006, temos percebido através de relatos, que com a migração de traficantes de comunidades com Unidade de Polícia Pacificadora (UPP), tem aumentado o abuso de forma geral e não apenas com a população LGBT. Essas pessoas migram de outros territórios e não tem vínculo com a comunidade e os moradores. E acredito que nem querem esse vínculo porque talvez estejam apenas de passagem”, explica Gilmar.
Para Mauro, a violência contra homossexuais em favelas não tem relação direta com tráfico. Quem sustenta esse tipo de ato discriminatório é o preconceito dos indivíduos. “Me sinto menos vulnerável na Maré, onde trabalho, e em Santa Cruz, bairro em que moro. O sentimento de pertencimento ao lugar nos dá uma sensação de segurança. Ser diferente em um lugar diferente torna o homossexual mais vulnerável. Eu estou mais vulnerável à noite, na Lapa, por exemplo”, completa Mauro, que já foi vitima de violência dentro de uma boate LGBT.
Segundo Relatório sobre Violência Homofóbica no Brasil – um documento elaborado com base nas denúncias sobre violência por opção sexual recebidas por órgãos públicos, principalmente uma central telefônica* divulgada em julho deste ano pela Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República (SDH) –, os casos de violações (que incluem violência física, psicológica e discriminação) contra homossexuais no Brasil cresceram 46,6%, em 2012. Foram contabilizados 9.982 casos de violações contra lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transexuais (LGBTT). A agressão contra homossexuais que mais cresceu entre 2011 e 2012 foram a psicológica, com um salto de 83,2%.
De maneira geral, entre os homossexuais há o sentimento de que falta diálogo e respeito para a construção de uma sociedade menos homofóbica, transfóbica, violenta, machista e sexista. Para Gilmar, existem, sim, casos de violência física contra homossexuais na Maré, mas desde o surgimento do Conexão G, os relatos que chegam até o grupo tem diminuído. “A questão da homossexualidade não é discutida e por isso as pessoas não entendem que o homossexual é um ser humano como outro qualquer. E é engraçado que quando eu ando pela comunidade as pessoas se referem a mim como ‘vocês’. Mas não são ‘vocês’, somos nós. Parece que somos seres que viemos do espaço e aterrizamos aqui e que não fazemos parte da humanidade”, brinca.
Opressão familiar e social
“Percebo que as pessoas só caracterizam a homofobia quando há agressão física, mas devemos olhar como agressão mais latente, as vivenciadas no seio familiar. As agressões verbais, psicológicas e sociais são as mais preocupantes já que as consequências podem refletir na vida desse indivíduo”, diz Mauro.
Gilmar revela que, quando tinha 12 anos, sofreu agressões físicas de um garoto de 10. “Eu passava na rua e esse menino sempre me batia porque eu me assumi gay no início da adolescência. E há pouco tempo, reencontrei aquele menino que me batia. Conversamos sobre homossexualidade, ele disse que não entendia o que era ser gay e hoje ele gosta de variar e ter relações sexuais com homossexuais.”, revela.
Entretanto, as travestis e as transexuais sofrem ainda mais violência. Gilmar justifica o excesso de violência porque elas fogem dos padrões da lésbica e do gay. “Há uma leitura de que você pode ser gay desde que não se vista de mulher. Ainda há o pensamento de que as travestis querem se tornar mulheres. O que não é verdade, elas não querem ser mulheres e sabem que nunca serão. Quando as transexuais fazem a readequação genital é porque mentalmente ela já não se identifica com aquele corpo de homem. Elas querem ser livres para colocar seios, saia, até porque para muitos homens isso é um fetiche”.
Homossexuais x religião
Há uma linha de tensão entre os homossexuais e a Igreja, na qual Gilmar afirma que é preciso respeito. Se a bíblia diz que Deus ama a todos, por que nem sempre quem prega o que está escrito nela consegue vivenciar? Para Gilmar, um dos pecados do movimento LGBT é falar apenas para os seus pares e não dialogar com quem pensa diferente. “Eu, enquanto instituição, não posso sentar apenas com mulheres porque elas são feministas e se aproximam da minha luta. Eu tenho que conversar com os evangélicos, com os pastores, padres, políticos, com vários representantes”.
Gilmar, que chegou a ser coroinha na igreja católica da comunidade Nova Holanda, hoje é espírita. Para ele, a igreja católica aceita o pecador, mas não aceita o pecado. “Aí você me pergunta: você foi reprimido na igreja? A todo momento eu sou reprimido. Chegou um tempo na minha vida que eu identifiquei que não era mais aquilo que eu queria, que eu não vou ficar me reprimindo e me escondendo por conta de dogmas e regras. Então procurei outro espaço que me acolhesse e onde eu pudesse me encontrar com Deus e o mundo espiritual, mas que não me reprimisse".
Ele chama atenção e considera que no território da Maré é muito visível esse preconceito através da religião. “Antigamente a Maré tinha vários terreiros e hoje a gente não tem nenhum. Será que as pessoas deixaram de ser espíritas ou foi a proliferação das igrejas evangélicas? Para mim, pelo fato da comunidade viver à margem de toda a sociedade e nas questões sociais não ter apoio do governo, a não ser das ONGs, eu acredito que a igreja acaba ocupando esse espaço e as pessoas se deixam levar. Se o pastor diz que ser homossexual não é coisa de Deus, as pessoas que estão ouvindo acabam acreditando naquilo como única verdade”.
*Para denunciar abusos contra os Direitos Humanos, inclusive contra LGBTs, use a central telefônica criada pela SDH, o "Disque 100".
A militância da aceitação em Nova Iguaçu
Em Nova Iguaçu, Baixada Fluminense, os grupos 28 de junho e Com Causa militam pela diversidade sexual e reconhecem: o maior desafio continua a ser a violência. Na noite de 30 de março de 2013, um homossexual foi baleado na saída de uma boate na rua da Lama. Um grupo em um carro passou atirando. O caso chegou a ser registrado na delegacia, mas ficou por isso mesmo.

Pedro Oliveira, militante e articulador CRDH da Com Causa, acredita que é preciso, antes de tudo, aceitação. “Somos vítimas de preconceito cotidianamente. Ainda é difícil uma colocação profissional para transexual, por exemplo. Esperamos que a sociedade leve nossa militância mais a sério, porque vivemos tempos difíceis de intolerância e um alto grau de homofobia em toda Baixada Fluminense. Por estarmos na periferia, muitas vezes os casos de homofobia que sofremos não são levados a sério”, conta
Vulgaridade, não. Identidade!
Lutando contra a intolerância, Pedro menciona a colocação profissional de travestis e transgêneros. “Quando você vai ao consultório médico é um travesti que te atende? Onde estão essas pessoas? Apresentar os documentos já abre uma oportunidade de constrangimento. Há meninos e meninas trans que têm uma formação ótima, mas não tem espaço para eles no mercado. Tudo bem a pessoa se prostituir porque quer, o problema está em ir para a esquina porque não tem outra opção”, diz Pedro.
Sobre as travestis, Pedro admite: “Eu mesmo sou gay e confesso que não entendia muito bem o motivo do cara colocar um vestido. Me perguntava: Pra quê isso, hein? Depois que fui entender que não é uma questão de escolha. O indivíduo se olha no espelho e não se sente feliz, não se reconhece. A luta é por ser aquilo que é, sem restrição. Isso é um direito humano. Não se trata de vulgaridade e sim de identidade”.
Nova Iguaçu e a Parada LGBT
A Parada LGBT é um acontecimento político em que se reivindicam direitos e também um momento de celebração. Geralmente quem organiza o evento são movimentos sociais, principalmente os LGBTs. Em Nova Iguaçu, ela acontece duas vezes ao ano, no centro de cidade e em Cabuçu, conhecida como “periferia da periferia”, onde a população LGBT é bem grande.
O grupo 28 de Junho é um dos organizadores da Parada. Em 2013, ela acontecerá em outubro, na Via Light. “Para comemorar a 10ª edição do evento, faremos também uma grande ação social, além da realização de shows. A parada tem um clima festivo, mas o objetivo principal é a luta contra a violência e o preconceito aos gays. Mas, antes disso, em junho, foi comemorada a Semana da Diversidade LGBT, com exibição de filmes com tema sobre homossexualidade, palestras e várias outras atividades,” conta Eugenio.
As leis não se aplicam na periferia
Infelizmente só existem leis no âmbito estadual, nenhuma especifica para o município de Nova Iguaçu. No Rio de Janeiro, existe o Rio Sem Homofobia, que visa ao enfrentamento da homofobia e da transfobia e promove a cidadania da população LGBT com Centros de Cidadania LGBT.
“Seria perfeito se as leis atravessassem a Linha Vermelha e chegassem aqui na Baixada. Quando o lugar tem pouca visibilidade é mais difícil aplicar punição. As leis existem para a Baixada, mas só no papel. Uma coisa é uma travesti ser esfaqueada na rua Nossa Senhora de Copacabana, em Copacabana, outra é ser esfaqueada na avenida Marechal Floriano Peixoto em Nova Iguaçu”, finaliza Pedro.
Um beijo pras travestis

Mas o sucesso não a acomodou. “Preferi partir pro funk porque o que eu queria passar para as pessoas não cabia na linguagem do hip hop”, diz Xuxú, em entrevista por telefone ao Viva Favela. Depois do primeiro hit de sucesso na web, ela já lançou várias músicas, e seus vídeos totalizam mais 600 mil acessos. Canções que vão desde “Desabafo”, onde afirma ser travesti, “mas filha de Deus”; e o mais recente trabalho, “Um beijo pras travesti”, cuja versão remix será lançada na Parada Gay de Goiânia, em setembro.
Nascida e criada no bairro Santa Cândida, Xuxú mora no Vitorino Braga. “Um pouquinho mais para baixo”, explica, se referindo ao bairro vizinho, também localizado na periferia leste de Juiz de Fora. Mas a relação com a origem é forte. “Eu nunca vou conseguir sair do Santa Cândida, pois foi a minha comunidade que me abraçou, quando eu comecei a cantar. Foram eles que me ouviram, que viram os primeiros shows, que me deram força. Minha comunidade é meu tudo”, diz a MC, com voz firme e suave, como de costume.
"No hip hop, aprendi a escrever"
Transformações
Na Posse de Cultura Hip Hop Zumbi dos Palmares, Xuxú se politizou. “Peguei muito livro para ler com a Adenilde”, diz com orgulho, se referindo à líder comunitária Adenilde Petrina. E a partir daí as mudanças foram rápidas. Se em 2009 ela morava no Santa Cândida, lançava o primeiro hit e alcançava a fama na web, em 2010 ela pensou em desistir. “Eu desanimei total, e fui morar no Rio, onde fiquei dois anos sem cantar”. E foi na Cidade Maravilhosa que ela percebeu a aceitação do funk - e virou MC. “Cheguei em Juiz de Fora gravando funk”, diz, se referindo ao retorno para Minas Gerais, agora como travesti.
As primeiras canções, já em ritmo de funk, foram escritas ainda no Rio de Janeiro. Uma delas parece ter sido feita para o momento em que o país vive hoje, onde lideranças religiosas têm dado declarações homofóbicas na mídia. A letra de “Desabafo”, cujo clipe está disponível na web, polemiza: “tem muita igreja que é mais barulhenta que meu próprio pagode”. Já a outra canção feita em solo carioca faz polêmica de outra maneira. Utilizando linguagens do mundo gay e termos de duplo sentido, a música “Eu fiz a chuca” é, no mínimo, erótica. E “Pantera cor de Rosa”, seu primeiro hit de sucesso, mescla os dois estilos: é consciente, mas engraçada.
"Xuxu: Travesti é ter coragem!"
Um beijo
A página de MC Xuxú no Facebook é prova do sucesso. Muitos seguidores, comentários e diversas fotos de shows onde ela se apresenta, cantando seu funk. Xuxú já cantou em eventos como o Rainbow Fest, em Juiz de Fora, além de diversas casas noturnas espalhadas pelo país. E se prepara para lançar o videoclipe da música “Um beijo pras travesti”. A idegia é receber fotos de todo o Brasil. “O povo tá mandando uma foto mais fofa que a outra. Tô tendo um ataque de fofura aqui. Eu acho fofo foto de biquinho, de beicinho”, finaliza, empolgada.
Veja o vídeoclipe da música Um beijo pras travesti