Complexidade das favelas é histórica
Das “cabeças de porco” ao Morro da Providência, do Complexo do Alemão e Rocinha para as páginas de um livro. Há um século pouca gente diria que as favelas teriam tanto destaque. Seja nas mídias, nas agendas da cidade e, sobretudo, a partir de experiências que profissionais e acadêmicos disponibilizam em artigos, livros, revistas ou outros veículos. Muita gente quer contribuir para que a favela seja entendida além dos estereótipos.
O espaço que antes não era reconhecido como cidade, hoje pode assegurar que conquistou alguns avanços, mesmo que não em sua totalidade. Ainda assim, quem mora nesses espaços precisa lutar dia e noite pelo direito à cidade.
O sociólogo francês Henri Lefebvre afirmou, em uma publicação divulgada em 1968, que “só é possível garantirmos este direito quando não há exclusão da sociedade urbana das qualidades e benefícios da vida urbana”. Pode parecer redundante, mas não é. Quando se fala em “minorias”, as favelas alcançam o primeiro lugar no ranking na maioria dos quesitos. Ainda hoje elas são vistas muitas vezes como um problema para a população.
Mas a favela ser vista assim é um fato histórico. De acordo com a socióloga Lícia do Prado Valladares, pesquisadora associada do IESP (Instituto de Estudos Sociais e Políticos), a favela, desde a década de 1960, quando se formaram um dos primeiros núcleos de trabalho sobre habitação no Brasil, já estava em evidência sob esta perspectiva no meio acadêmico e político, centrada na teoria da marginalidade social, já que elas eram apontadas como “bairros marginais” pelos próprios teóricos.
Desta forma eram revelados resultados de pesquisa evidenciando o crescimento da população que habitava esses espaços, conforme Lícia em seu texto. “Não foi por acaso que os primeiros estudos começaram no Rio: despontando na paisagem urbana desde o final do século passado. As favelas, já em 1948, atingiam o número de 105, representando, em 1950, 6,7% da população total; em 1960 esta porcentagem sobe para 9,3 %, chegando em 1970 a 13%. Estimativas mais recentes apontam a existência, em 1979, de 375 favelas e uma população favelada em torno de 1 milhão e 500 mil habitantes, o que equivale dizer que “um em cada quatro habitantes do Rio seria favelado”, apontava a pesquisadora no capítulo “Favela” do livro “Habitação no Brasil: Uma introdução à Literatura Recente”, publicado em 1987.
Favelas do Rio de Janeiro: História e direito
Na lógica do “desenvolvimento urbano” as favelas eram vistas nos jornais do século XIX como comunidades em crescimento, mas sem chance de se expandir. O que se nota, porém, é justamente o contrário. Hoje elas servem como cenários para novelas, atraem turistas do mundo inteiro, mas continuam à margem da inclusão social.
Em outra publicação, chamada “Favelas do Rio de Janeiro: História e Direito“, o principal questionamento é como as favelas e seus moradores são tratados pelo Estado e pela sociedade ao longo da história. O autor Rafael Soares Gonçalves é advogado, historiador e atual professor do departamento de Serviço Social da PUC-Rio e organizou alguns livros e revistas sobre essas questões.
Foi durante seus estudos para o mestrado que Rafael se deparou com uma experiência diferente no Sertão de Carangola, região periférica de Petrópolis, no Rio de Janeiro e começou a indagar algumas afirmações sobre a história das favelas. No texto ele tenta promover o diálogo entre história, direito e favelas sob a perspectiva jurídica. Ele garante que a bibliografia que trata do assunto traz uma série de preconceitos, construções e representações vinculadas às favelas que merecem ainda ser estudadas, por isso afirma que as análises e o interesse pelo assunto não se encerraram ao fim da tese.
Do estudo à prática
Na prática, os primeiros profissionais que subiram os morros com a finalidade não só de observação, mas com o intuito de levar algum tipo de serviço mais qualitativo, foram os assistentes sociais. “Provavelmente, os primeiros profissionais, que sistematicamente visitaram e descreveram as favelas foram os assistentes sociais. Essa descrição é rica e importante pra que a gente compreenda a favela. Na década de 40, a profissão vivia um contexto histórico muito específico neste momento, e muitas vezes as suas conclusões eram embasadas em ideias assistencialistas da época, até centradas na marginalidade. Então, o assistente social era visto como quem iria ‘salvar’, desenvolver, formar os moradores e tornar visíveis suas demandas”, explica.
Outros profissionais como advogados, historiadores e médicos e entre outros, demoraram um pouco mais de tempo para entrar nesses espaços e compreender o ambiente de maneira mais concreta. “Acredito que seja importante fazer história com olho no presente, desconstruir um pouco o que a gente naturalizou com o passar dos anos. Pra que a gente possa compreender um pouco mais as questões dos dias atuais”, filosofa.
O professor ressalta que quem “discute favela”, precisa refletir que a favela é este espaço heterogêneo, muito mais associado a ideia de local ou bairro, onde você vai encontrar de tudo, como em qualquer outra região. “A favela é uma construção de um bairro, de uma cidade”, identificando que há dificuldades para aceitação desta afirmação já que muitas vezes os moradores são invisibilizados em relação ao resto da cidade.