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Povo quilombola eterniza legado cultural

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Entrada do Quilombo Sacopã, o único localizado na Zona Sul. (Foto: Tamiris Barcellos)

Entrada do Quilombo Sacopã, o único localizado na Zona Sul. (Foto: Tamiris Barcellos)

A palavra quilombo remete ao imaginário de um local rústico, pobre, onde os negros fugidos das senzalas podiam se refugiar junto aos seus irmãos e viver sua cultura com um pouco de liberdade. Mas o que muitos não sabem é que existem quilombos no espaço urbano em pleno século XXI e que as terras quilombolas são organizadas e avançadas como qualquer outro bairro da cidade. Mais do que isso.

Embora muitas vezes sejam vistas como invasão e de estarem geograficamente distantes entre si, os quilombos de Sacopã, Pedra do Sal e Camorim são espaços de resistência/re-existência e luta pelo reconhecimento como terra e povo remanescente quilombola.

Com o crescimento das urbes, esses locais se viram obrigados a descaracterizar sua estrutura física, mas estão longe de perder a essência cultural e a cooperação coletiva. No Rio de Janeiro, bairros como Lagoa, Saúde e Jacarepaguá figuram como locais de preservação de memória de antepassados de escravos negros.

Segundo o decreto n° 4887 de 20 de novembro de 2003 são remanescentes das comunidades dos quilombos “os grupos étnico-raciais, segundo critérios de auto-atribuição, com trajetória histórica própria, dotados de relações territoriais específicas, com presunção de ancestralidade negra relacionada com a resistência à opressão histórica sofrida”.

Reconhecimento ainda demora

Para ser reconhecido como território quilombola, os representantes dos quilombos vão em busca de órgãos oficiais, como a  FCP (Fundação Cultural Palmares) e o INCRA (Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária). Segundo a assessoria da FCP, as instituições trabalham juntas para que as terras sejam tituladas. Enquanto a FCP é a responsável pelo processo de certificação e de titulação das terras quilombolas, cabe ao INCRA realizar o laudo antropológico, limitar a área a ser ocupada, além de cuidar de necessárias desapropriações de fazendeiros e empresas.

Crédito: Divulgação

Crédito: Divulgação

Apesar das instituições tratarem deste tema específico, não há um prazo para que processo de reconhecimento dos quilombos aconteça. Os líderes quilombolas contam que apesar da agilidade para o cumprimento de toda a burocracia, há terras que só foram reconhecidas quase 10 anos depois de seus representantes darem entrada no processo. O INCRA argumenta que a regularização varia de caso para caso. Em algumas situações, os requerentes já são titulares das terras. Em outras, como o quilombo da Pedra do Sal, as terras estão em domínio do município. Segundo o vice-presidente da Confederação Nacional Quilombola, Damião Braga, representante do quilombo Pedra do Sal, a morosidade no processo deve continuar. “Felizmente nós, quilombolas, aprendemos a contar além dos dedos das mãos e dos pés. Hoje são 5000 territórios quilombolas no Brasil dos quais o estado brasileiro reconhece, oficialmente, menos de 150”, comenta.

Projeto garante que quilombos sejam Áreas de Especial Interesse Cultural 

Quando era vereador, em 2011, Eliomar Coelho criou o projeto de lei 1091 que previa considerar os quilombos como Área Especial de Interesse Cultural (AEICs) dentro do plano diretor da cidade. A aprovação da lei só aconteceu em 2014, abrangendo as áreas da Pedra do Sal e Sacopã.

Desde 1992 essas áreas estavam previstas no Plano Diretor da cidade, visando a proteção de patrimônios históricos e arquitetônicos. O foco seria mais a estrutura física em detrimento das construções culturais e sociais que aquele espaço poderia proporcionar. As AEICs são instrumentos que garantem o reconhecimento e a demarcação de territórios destas comunidades. Quando se trata de quilombos localizados em áreas urbanas, a legislação municipal nem sempre dá garantias de pertencimento.

Assim como o processo de reconhecimento de terras, reconhecer o espaço quilombola como uma AEIC também demanda um tempo que vai muito além do interesse dos parlamentares. “Neste caso, cabe salientar a enorme importância que o movimento social e as próprias lideranças dessas comunidades tiveram em sensibilizar e pressionar o prefeito”, diz a assessoria de imprensa de Eliomar Coelho.

Busca por reconhecimento cultural

Entre os bairros de Curicica e Vargem Grande, em Jacarepaguá, fica localizado o quilombo do Camorim. Curioso é pensar que, muitos que vivem ali, desconhecem a história do local e alguns outros simplesmente ignoram o que seja aquele espaço. Mesmo muito urbanizado, o quilombo esconde tesouros naturais como o açude do Camorim e densas matas que fazem a felicidade dos debravadores de trilhas.

O primeiro indício da terra quilombola é a Igreja de São Gonçalo do Amarante, construída em 1625 por escravos. Bem pertinho ficava localizado o Engenho do Camorim, com a casa-grande e a senzala. “Meu bisavô e meu avô foram capitães do mato aqui nessas terras e andavam atrás dos escravos que fugiam para a Pedra do Quilombo”, conta Adilson Almeida, presidente da Associação Cultural do Camorim (Acuca).

Igreja no Camorim foi construída por escravos no século XVII. (Foto: Adilson Almeida)

Igreja no Camorim foi construída por escravos no século XVII. (Foto: Adilson Almeida)

Hoje o que resta é apenas a igreja. A casa-grande foi vendida e tornou-se uma pousada. Em outra área, com uma gruta onde os escravos se instalavam, está sendo construído o complexo de prédios que irá abrigar jornalistas nas Olimpíadas de 2016. Parte da terra do Camorim ainda foi comprada por uma construtora que desmembrou, desmatou e fez uma série de escavações para construir os prédios que seriam a sede dos Jogos Olímpicos. Após a certificação, que veio em 2014, houve o repasse dessas terras para a prefeitura.

Adilson Almeida diz que ainda luta para que o espaço seja reconhecido culturalmente. “Dentro da Acuca a gente oferece aula de capoeira, maculelê, dança afro, coco de roda… Mas como não somos reconhecidos com área cultural, não temos um espaço físico. Há anos quando mudou a gestão da igreja, o padre abraçou a nossa causa e nos chamou pra fazer uma parceria com ele, cedendo o espaço”, conta Adilson. Além da área cultural, a associação promove realizações de reflorestamento e oferece aulas de guia de turismo na região do quilombo.

O verde em meio ao cinza

Do outro lado da cidade, pode-se dizer que os moradores da Associação Cultural Quilombo Sacopã, na Lagoa, são privilegiados. Localizado na rua homônima, os quilombolas vivem em um espaço cobiçado pela especulação imobiliária, onde poucos conseguem arcar com o valor do metro quadrado. No local 30 pessoas – todos parentes – carregam uma carga histórica de 105 anos e seis gerações de remanescentes de escravos.

No século XIX, o avô do líder Luiz Pinto, também conhecido como Luiz Sacopã, fugiu de Nova Friburgo e chegou àquele local junto com outros negros forros e fugitivos. Eles se abrigaram naquela região que ainda não era desmatada.

O espaço passou a ser realmente conhecido como área cultural nos anos 1960, quando alguns bambas do samba passaram a frequentar o morro. Essa cultura musical se estendeu ao longo dos anos e até hoje a Família Pinto realiza uma feijoada no espaço do quilombo. “Houve tempos em que alguns moradores se diziam incomodados com o barulho que fazíamos e nos queriam ver fora daqui por conta disso, mas hoje não acontece mais”, conta Luiz Sacopã.

Desde 2006 o quilombo Sacopã (ou Família Pinto) é reconhecido como tal pela Fundação Cultural Palmares. Apenas em 2014 o espaço foi reconhecido pelo Incra como quilombo urbano. Ainda há questões em aberto, mas o pior já passou. “O título final não saiu. Temos o registro da posse como garantia. O Incra nos reconheceu como proprietários. Agora não existe mais interesse imobiliário nas nossas terras”, conclui.

Muito além da Pedra

Luiz Sacopã e Damião Braga são líderes dos quilombos Sacopã e da Pedra do Sal. (Foto: Tamiris Barcellos)

Luiz Sacopã e Damião Braga são líderes dos quilombos Sacopã e da Pedra do Sal. (Foto: Tamiris Barcellos)

A Pedra do Sal possui mais que um histórico quilombola. Vizinho do Cais do Valongo, era justamente por aquele porto que a mão de obra entrava no país. A chegada dos negros naquele local iniciou-se no século XVI, com a vinda dos escravos para carga e descarga de sal. Muitos vindos da Bahia vieram morar ali. Com isso, a região ficou conhecida como “Pequena África”, por manter e garantir as tradições afro-brasileiras no local, como o samba e as religiões de matriz africana.

Tombado provisoriamente em 1984 e reconhecido em 2005, a Associação das Comunidades Remanescentes do Quilombo da Pedra do Sal abriga 25 famílias e uma carga história e cultural de quase dois séculos. O quilombo compreende os largos João da Baiana e São Francisco da Prainha e alguns imóveis das ruas Sacadura Cabral, Camerino, Travessa do Sereno e Argemiro Bulcão.

Desde a chegada dos escravos toda a área tem um apelo cultural muito forte. Na Pedra do Sal acontecem rodas de samba, shows de jazz e de black music e eventos de culinária que atraem moradores de outros quilombos da cidade. “Estamos retomando o nosso território diante de todas as adversidades e ocupando-o com eventos da nossa cultura” disse Damião Braga, líder quilombola da Pedra do Sal.

Apesar disso, há um atrito grande entre os organizadores dos eventos e os moradores, que se sentem prejudicados com o que consideram excesso de barulho e desrespeito à lei do silêncio. “Infelizmente a Pedra, onde acontecem os eventos, é um local da área municipal, que faz parte do Plano Diretor. Ela é do povo da cidade, mas acima de tudo é dos moradores do quilombo”, garante Braga.

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