A marca da favela é a resistência

O evento trouxe três representantes das comunidades e um coronel da PM para discutir o projeto de pacificação. (Fotos: Tamiris Barcellos)
Com transmissão ao vivo pelo Google+, o Viva Favela realizou ontem, dia 16 de abril, o primeiro encontro da série “Diálogos Viva Favela”, na sede do Viva Rio.
“A gente tem visto muitos encontros sobre as questões que envolvem o projeto de pacificação, mas o que tem chamado nossa atenção é o tom, muitas vezes desrespeitoso. O principal é que tem faltado ideias, sugestões e processos conciliatórios. O que a gente tem a ousadia de querer, com esta conversa, e oferecer à favela, à cidade, ao estado e à polícia, um conjunto de propostas e uma conversa franca e promissora”, disse o coordenador do Viva Favela, Carlos Costa, que idealizou o encontro.
Para compor a mesa, foram convidados o ex comandante da polícia militar e coordenador de segurança humana do Viva Rio, Ubiratan Angelo, que fez parte da equipe que implementou os primeiros projetos de policiamento de proximidade; e três protagonistas de favelas cariocas: Repper Fiell, da Comunidade do Santa Marta, Davison Coutinho, mestrando no curso de Serviço Social na PUC e William de Oliveira, que além de morador da Rocinha e colaborador do Viva Favela, é coordenador do Movimento de Favelas do Conselho Nacional de Direitos Humanos e ex presidente da Associação de Moradores da Rocinha. O tema escolhido foi “Questões da Pacificação” e Carlos Costa decidiu iniciar o debate com uma pergunta que ele considerou muito difícil de ser respondida. “Quais são, afinal, os pontos positivos da política de pacificação?”, provocou.
“Pontos positivos? Vários!”, disparou o Coronel Ubiratan. “O índice de criminalidade violenta e de letalidade, caiu. O índice de homicídios também. O índice de balas perdidas cai. E os confrontos caíram. Isso são números”. Além disso, ele citou o fato de que pela primeira vez, polícia, governo, sociedade civil e iniciativa privada sentaram à mesa para conversar. “No início do projeto da UPP, o setor privado estava presente, todo mundo viu isso. Eles estavam investindo porque tinha retorno”, explica.
Repper Fiell se apressou em dispensar rótulos. “Não sou líder comunitário. O Santa Marta tem 6 mil moradores. Como vou representar todos eles? Cada um tem sua visão. Estou trazendo a minha como rapper, crítico e negro”. Fiell é morador da primeira favela que recebeu o projeto de pacificação, mas categoricamente afirma que nunca acreditou no projeto que, segundo ele, sendo feito pelo governo e pela polícia militar, nunca poderia atender aos interesses e à defesa dos moradores das favelas. Descrente, Fiell diz que não vê pontos positivos e que “não acredita em pacificação feita com fuzil. O que estamos vendo no Alemão é pacificação com violência. No Santa Marta não teve morte porque a gente agiu politicamente logo no início”, afirma.
Ele conta que antes dos casos do desaparecimento do pedreiro Amarildo e do assassinato do dançarino DG, no Cantagalo, ele foi o primeiro morador de favela com UPP a sofrer violência em público. Segundo ele, ele recebeu voz de prisão depois de ter escrito uma cartilha de abordagem policial, que não foi contestada pela polícia. “Fui detido por abuso de autoridade no meio de um evento. Eles chegaram, desligaram o som e me levaram preso”, garante.
Já William acredita que faltou uma participação mais ativa da sociedade civil na implementação do projeto de pacificação, mas aponta como um ponto positivo a esperança que muitos moradores ainda têm de que haja uma reviravolta: “Ainda existe a esperança de poder viver num lugar onde possa haver segurança e paz”. Ele também apontou como a decisão do Secretário de Segurança de reconhecer as falhas e querer reformular como outro ponto positivo. “Aqui ninguém é contra a polícia. Mas houve falhas graves e que quebraram a credibilidade no projeto de pacificação. A questão mais forte é a esperança que muitos moradores ainda têm de a coisa ser reformulada e dar certo”, acredita.
O formato do “Diálogos” permitiu que o público participasse, como a jornalista Juliana Portella, moradora de Nova Iguaçu, que indagou por que o projeto de pacificação só foi implementado na capital. “O turista não vai para Nova Iguaçu. Os jogos, os grandes eventos não vão para Nova Iguaçu”, explicou Fiell.
Ainda há esperança
A crença na eficácia do projeto de pacificação também foi questionada. Para William, o desgaste da UPP atinge tanto a sociedade quanto a polícia. “Todo desgaste que aconteceu pela ocupação desorganizada e pela falta de diálogo, hoje é um transtorno. Essa aproximação demorou a ocorrer. O morador que acreditou não pode se manifestar. O eco da descrença tomou conta”, diz.
Fiell é mais duro. “Qual foi a grande propaganda da UPP? Acabar com o tráfico! Mas as pessoas vêem que o tráfico continua lá. A outra mentira foi dizer que haveria mudança na estrutura da favela, mais saneamento, mais luz. Você passa na São Clemente e vê um monte de casas pintadas, mas quem mora lá sabe que algumas casas continuam sendo de madeira e não tem saneamento básico. A descrença vem daí”.
Davison diz que se entristece, mas é forçado a entender quando o morador diz que preferia como era antes, quando ainda havia domínio do tráfico. “Fico pensando: será que as pessoas preferem quando era criminalizado e não conseguem suportar essa nova ordem? Eu não aguento ouvir isso, mas não tenho argumento para discutir com esse morador… Eu não consigo defender esse projeto. Eu não posso concordar que só se pense em polícia para uma comunidade que viveu décadas e décadas de abandono. Por que só se pensa em colocar mais polícia? Por que não se coloca mais professor? Eu não sei se o governo não entende ou se não quer entender, mas assim não dá certo”.
Morador do Complexo do Lins, Rafael Sousa também questionou se um dia haverá políticas públicas que integrem saúde, educação e saneamento à política de segurança. “Hoje só temos aquele contêiner onde os policiais trabalham em condições bem precárias. Como trazer o poder público para pensar junto com a sociedade? Esse foi o principal ‘pecado’ da UPP – vender uma imagem do que não é em relação aos serviços públicos. O Beltrame fala sempre que sozinho não promove nada”, lembrou. Em resposta, mais uma vez Fiell disse não acreditar que esta parceria do estado com a polícia pode melhorar os serviços públicos dentro das favelas. “Não acredito que o estado vá trabalhar com educação, cidadania nas favelas. Não acredito na polícia que vai respeitar o negro. Em outro país, que eu não conheço, pode existir essa realidade. Para isso, teríamos que destruir esse sistema que está aí para ricos e pobres. Como seria se a UPP entrasse num condomínio no Leblon? Será que os moradores iriam aplaudir? A polícia não quer que a gente se organize, quem vai mudar nossas vidas somos nós”, garantiu.
Favela é solução
No último bloco, Carlos Costa lembrou que antes da implementação, havia um grupo de pensadores prontos a criar estratégias de ações no campo social, mas hoje tanto a favela quanto a polícia encontram-se isoladas no cenário. “Até a UPP Social não tem mais esse nome e passou a se chamar Rio Mais Social”, aponta.
“Acho que as instituições acabaram se afastando muito porque os interesses econômicos acabaram. A primeira coisa que vimos na Rocinha foi a chegada dos serviços de instalação de TV a cabo um dia antes. Muita gente acreditou que teria acesso aos direitos, mas tudo o que a gente esperava não veio, ficou essa frustração do morador. Agora muitas outras instituições ainda estão lá, mas não estão ligadas à UPP, a UPP ficou manchada”, disse.
“A PUC, por exemplo, tem um trabalho na Rocinha, mas é micro. E acho que retroceder é uma perda. Acho que a gente tem que avançar, mas tem que mudar também. A gente já tem certeza que o caminho não é esse. Enquanto a favela continuar a ser vista como um problema, não vamos adiante. Temos que tratar a favela como cidade”, continuou.
Antes de encerrar, o mediador Carlos Costa lembrou a importância do debate para melhorar as perspectivas de futuro da população.
“Ninguém deixa de trabalhar, de ir ao samba, ao baile funk, porque teve um tiroteio. Ninguém deixa de viver” complementa Davison. Menos otimista, Repper Fiell, terminou afirmando que, para que a mudança realmente aconteça, é necessário que cada um “faça suas pequenas revoluções”.