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Censo nas favelas é controverso

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Foto: Viva Favela

Órgãos públicos e favelas estão quase sempre em descompasso. No que diz respeito à definição do número de moradores, o padrão não é diferente. Na Rocinha, por exemplo, o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) estimou que, em 2010, existiam 69.356 habitantes. As lideranças comunitárias trabalham com 165.000. No meio do caminho, a secretaria estadual de Obras, em 2009, estimou 101.000 moradores. O Instituto Pereira Passos (IPP) utiliza, em quase todos os seus estudos, os números do IBGE.

Líderes comunitários de diversas favelas dizem que, ao estimar a população para baixo, o poder público se isentaria de mais responsabilidades. “Menos população, menos investimento”, resume Lúcia Cabral, moradora do Complexo do Alemão e coordenadora do Espaço Democrático de União, Convivência, Aprendizagem e Prevenção (Educap). Funcionários do IBGE e do IPP, contudo, argumentam que a estimativa para cima, por parte das Associações de Moradores, também atende a interesse por mais investimentos.

A estimativa das populações de favelas, no entanto, está longe de ser uma tarefa simples. “Uma das características que torna difícil o estudo desse objeto, do ponto de vista demográfico e também urbanístico, é o fato de que a favela não tem um limite estático”, afirmou Fernando Cavalieri, do IPP, em debate na instituição, em 2012. A própria delimitação das comunidades, portanto, já é problemática. Para o IBGE, que no Censo 2010 passou a classificar e estudar os “aglomerados subnormais” (favelas, grotas, palafitas, etc.), são três os critérios: os aglomerados devem reunir um mínimo de 51 casas com ocupação ilegal da terra, além de apresentar urbanização e oferta de serviços públicos precários. A prefeitura do Rio de Janeiro e o IPP trabalham com definição parecida (a exceção é que as favelas devem ter um mínimo de 100 domicílios).

Foto: Mariana AlvimPara o presidente da Associação de Moradores e Amigos do Vale (Amavale-Fallet), Flávio Mazzaro, essa definição deixa de fora muitas moradias que necessitam dos mesmos investimentos que o restante da comunidade. “Existem casas com a posse do terreno que com o tempo se degradaram e hoje não se diferenciam do resto do Fallet. No entanto, elas não são contabilizadas nas políticas públicas para as favelas”, afirma Mazzaro. Para Luiz César Queiroz Ribeiro, do Observatório de Metrópoles, a delimitação das comunidades é mesmo complicada – mas isto não deveria isentar o poder público de investir nas moradias que tenham posse do terreno, mas que sofram as mesmas deficiências das favelas.

Diferentes metodologias, diferentes resultados

O presidente da Amavale estima que, no setor “AM e Amigos do Vale”, dentro do Fallet, existam 485 moradores, ao invés dos 161 estimados pelo IPP, com base no Censo 2010. Segundo Mazzaro, este número foi obtido com uma contagem porta a porta, feita por ele. No Alemão, Lúcia conta que líderes comunitários de diversas comunidades juntaram seus cadastros e chegaram a um número de aproximadamente 190.000 habitantes. Especialistas, no entanto, questionam a eficiência dessas metodologias. “Estas pesquisas foram publicadas e documentadas? Se não, é questionável que sejam pesquisas sérias”, afirma o doutor em estatística Kaizô Iwakami Beltrão, para quem os dados do Censo são quase totalmente confiáveis.

Queiroz Ribeiro, do Observatório, endossa. “Eu acredito mais na pesquisa do IBGE, que tem longa tradição no levantamento de dados e reputação internacional. Pode existir uma imprecisão mínima, mas diferenças gritantes como a da Rocinha não são possíveis”, afirma, referindo-se aos dados do Censo e das lideranças da comunidade. A estimativa de 165.000, segundo o agente social e morador da Rocinha José Martins de Oliveira, é resultado de contas que se baseiam na instalação de medidores de eletricidade da Light.

Moradores apontam negligência e subnotificação no Censo

Martins, assim como muitos, relata supostas falhas na realização do Censo 2010. “Um coordenador local do Censo me disse que não conseguiu chegar nem na metade das residências aqui. Se na minha casa já faz quatro censos que nenhum recenseador passou, imagina nas áreas mais difíceis?”, diz. Lúcia Cabral suspeita que os recenseadores inventem os números. José Eustáquio Diniz, doutor em demografia, admite que possa ocorrer uma subenumeração, mas esta seria mínima. “A subenumeração acontece em todos os censos no mundo. No Censo brasileiro de 2010, há estimativas de que ela ficou na ordem de 1 a 3% da população recenseada”, diz.

A Assessoria de Imprensa do IBGE refutou que a negligência dos recenseadores e supervisores tenha sido sistemática, argumentando que o processo passa por preparação e revisão rigorosas. Para Cavalieri, do IPP, os dados do IBGE são satisfatórios, já que a delimitação dos “aglomerados subnormais” é feita em conjunto pelas duas instituições (existe uma pequena diferença no número de habitantes de favela estimados pelo órgão municipal, que é 3,1% maior).

Foto: William de Oliveira Kaizô Iwakami Beltrão lembra que outro possível motivo para que os números sejam tão diferentes é que o Censo acontece a cada dez anos e, neste período, a  população pode crescer. Por esta defasagem, a Secretaria Estadual de Obras optou por encomendar censos na Rocinha, em Manguinhos e no Alemão para  realizar grandes empreendimentos como o Programa de Aceleração do Crescimento (PAC). Em nota, a Secretaria afirmou: “o censo do IBGE não representa a  totalidade dos moradores locais pois foi realizado em dois meses e o nosso ficou mais de um ano na comunidade. Outro aspecto bastante comum na Rocinha  é a existência de uma moradia, cujo acesso se faz por dentro de outra e com isso pode ter havido subnotificação”.

Flávio Mazzaro diz que o uso dos dados do IBGE pelo IPP o irritam. “Os dados usados pelo IPP em sites como o da UPP Social são gerados a partir de uma  premissa errada. Por que o IPP não faz suas próprias pesquisas?”. De acordo com Cavalieri, assessor especial da Presidência do órgão, o IPP não dispõe de recursos humanos e financeiros para realizar o imenso trabalho de recenseamento de cerca de 1.400.000 moradores de favelas. Para Luiz César Queiroz  Ribeiro, este recurso existe, mas é usado em outras ações da Prefeitura. “Por que não tira o dinheiro do Porto Maravilha e investe no social? Com ¼ da  população vivendo em favelas, o IPP deveria ter este tipo de pesquisa”, afirma o estudioso de planejamento urbano.

Líderes querem participação de morador no censo

Perguntados sobre o censo ideal das comunidades, todos os líderes entrevistados afirmaram que ele deve contar com a participação da população local – prática que o IBGE afirma ter adotado no Censo 2010. Luiz César Queiroz Ribeiro, no entanto, alerta que a participação de moradores deve ser feita com cuidado e supervisão. “A pesquisa domiciliar não é fácil de ser feita. É preciso muita técnica e investimento”, afirma.

Foto: DivulgaçãoUma ação da Redes da Maré pretende mapear as particularidades demográficas do complexo, a serem publicadas em breve. O Censo da Maré, realizado em 2012, utiliza o método recenseamento e cobertura do IBGE, com base cartográfica previamente corrigida e atualizada por uma equipe de técnicos e especialistas. De acordo com Dálcio Marinho, da parceira Observatório de Favelas, o Censo do IBGE, por ter abrangência nacional, não consegue mapear as questões específicas da realidade de cada território. Assim, o Censo da Maré pretende recolher informações particulares das comunidades dali que possam contribuir para a resolução de diversas demandas locais.

Marinho lembra que, no Censo, dados mais específicos e qualitativos são obtidos através de questionários da Amostra – ou seja, apenas uma parcela da população é consultada, diferentemente da Pesquisa de Universo. “Para o município do Rio como um todo, em função do tamanho de sua população, a expansão da amostra apresenta um ótimo grau de precisão. Mas, no caso da população de um bairro, como a Maré, a expansão dos resultados dessa amostra é demasiadamente imprecisa, portanto, não recomendável”, afirma o geógrafo. Ele adianta que o Censo da Maré contabilizou cerca de 140 mil habitantes, enquanto o Censo do IBGE de 2010 apresentou 135.810 moradores (somando, ao bairro Maré, a favela Marcílio Dias, considerada pelos moradores parte do complexo).

Em debate realizado pelo IPP, em setembro de 2012, Jaílson de Souza e Silva, do Observatório de Favelas, pediu uma definição de favela alternativa ao que é definido pelos órgãos oficiais. “Em geral, a favela é tratada primeiramente através da ideia de precariedade. Nos incomoda a descrição da favela apoiada apenas na paisagem”, afirmou o geógrafo, apresentando outros critérios para caracterização, como a insuficiência de investimentos pelo estado, a alta densidade populacional e indicadores ambientais abaixo da média da cidade.

Silva questionou também o termo “aglomerado subnormal”, usado pelo IBGE que, para ele, reforça o estereótipo da precariedade. Em resposta, Wasmália Bivar, presidente do instituto, afirmou que nenhum técnico gosta do termo, mas ele corresponde a conceitos das Nações Unidas, com a finalidade de possibilitar uma comparação internacional. Além disso, ela afirmou que, apesar de válidas, as reivindicações por definições de favelas mais alternativas são dificultadas por aspectos técnicos. “O conceito do IBGE se concentra na dimensão urbanística, não considerando dimensões antropológicas e históricas, por exemplo. Em primeiro lugar, porque se perderia a comparabilidade internacional; em segundo lugar, porque precisaríamos de análises que não são diretamente observáveis”, afirmou, lembrando que para o trabalho com terras indígenas, por exemplo, o instituto conta com delimitações realizadas por terceiros – resultado de uma investigação história e antropológica.

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