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Famílias de vítimas querem direito ao luto

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Foto: Rio da Paz
No próximo sábado, 2, dia de Finados, a Rocinha organiza novo ato em apoio à família do pedreiro Amarildo de Souza, cujo corpo ainda não foi localizado. O caso deu repercussão nacional ao drama de milhares de famílias brasileiras, afetadas pelo desaparecimento de um parente, e revelou a opacidade dos dados referentes a desaparecimentos no Brasil, mal atualizados. A invisibilidade das vítimas, que pertencem em sua maioria às categorias mais frágeis da população, decorre da falta de inquéritos e da ausência de uma estrutura de apoio às famílias, que muitas vezes não ousam dar queixa, ou não são devidamente amparadas na busca por seus parentes.

O Rio está entre os estados que bate maior recorde no número de desaparecimentos registrados. De acordo com o Instituto de Segurança Pública do estado (ISP), apenas no primeiro semestre de 2013 já foram registrados mais de 3600 casos de desaparecimentos. Ou seja, uma média de 17 pessoas desaparecidas por dia. “No entanto, é preciso ressalvar que a polícia faz o registro, mas não monitora o reaparecimento dessas pessoas” adverte o sociólogo Michel Misse, diretor do Núcleo de Estudos da Cidadania, Conflito e Violência Urbana (Necvu) da UFRJ/IFCS.
Desaparecimentos não monitorados
Na ausência de um monitoramento, quase nada se pode afirmar sobre esses números, a não ser hipóteses. As que Misse emite, baseando-se na única pesquisa realizada sobre o assunto pelo próprio ISP, com supervisão do professor Gláucio Soares, são no entanto estarrecedoras. O estudo, de 2009, analisa uma amostra de 456 casos de desaparecimentos em 2007 (10% do total). Segundo a pesquisa, cerca de 71% dos desaparecidos registrados pela polícia reapareceram vivos, 15% não reapareceram e 7% reapareceram mortos. Desses, mais da metade foram casos de homicídios dolosos, entretanto registrados pela polícia ou pela secretaria de saúde. Apenas 1% dos mortos não foram registrados como homicídios, e se sabe que foram assassinados apenas pelo depoimento de parentes aos pesquisadores ou à polícia. “Se fosse possível projetar esses números para o universo de 60 000 desaparecidos registrados entre 2000 e 2012, teríamos cerca de 500 a 600 pessoas assassinadas sem registro na polícia ou na secretaria de segurança neste período, um número semelhante ao dos desaparecidos durante a ditadura em todo o Brasil” alerta Misse.
Pela mesma projeção, o período contabilizaria 9 000 pessoas que não reapareceram e cerca de 3 000 pessoas assassinadas, contudo registradas como homicídio doloso pela polícia ou pela secretaria estadual de saúde. “Mas essa projeção para o total de desaparecimentos não é estatisticamente válida” esclarece o sociólogo, “ela apenas serve como referência para uma pesquisa mais ampla, que compreenda o total dos casos nesses treze anos no estado do Rio de Janeiro”.
Medo de testemunhar
Para os moradores das favelas cariocas, onde a memória coletiva mantém vivos inúmeros casos que não passaram pelo registro da polícia, esta extrapolação não parece nada surreal. “A gente conhece muitos casos de favelas nas quais uma pessoa foi morta, o corpo não foi encontrado, mas a família não registra por medo da polícia, porque já sabe que a vítima morreu e não tem expectativa de encontrar a pessoa com vida” conta Ignácio Cano, do Laboratório de Análise da Violência da UERJ.
Foto: arquivo pessoalEste foi o caso da família de Rodrigo Matoso de Araújo, desaparecido desde 2006, aos 26 anos. O rapaz, morador da Rocinha, saiu de moto trabalhar no morro de São Carlos e nunca mais voltou. Devido sua dependência com drogas, das quais estava tentando se afastar na época, a família não ousou dar queixa. “A única coisa que fizemos na época foi dar a moto como roubada, pois imaginávamos que se encontrassem a moto, poderíamos ter a esperança de descobrir o verdadeiro paradeiro do corpo” relata o irmão da vítima, Rafael Matoso de Araújo. Rafael, 36, é hoje comerciante, casado e pai de dois filhos – um dos quais, nascido no mesmo dia que o tio falecido, foi batizado Rodrigo em homenagem a ele. A família inteira ainda sofre, a cada data comemorativa. “A maior dor é não ter conseguido fazer o seu enterro” lamenta o comerciante.
“Pessoas reais, vítimas invisíveis”
Para amparar as vítimas, as iniciativas têm vindo da sociedade civil. A campanha “Desaparecidos da Democracia – pessoas reais, vítimas invisíveis” foi lançada pela OAB/RJ em agosto deste ano, com o objetivo de recolher o depoimento de testemunhas e parentes de vítimas de desaparecimento forçado ou de confrontos com forças policiais. O comitê de trabalho iniciou essas sessões em outubro. Já a ONG Rio da Paz, junto com a rede Meu Rio, têm por sua vez apoiado a iniciativa de Jovita Belfort, mãe de Priscila, desaparecida desde 2004, pedindo a criação de uma delegacia especializada na localização de pessoas desaparecidas. A campanha, lançada no site Panela de Pressão, sugere a centralização de recursos humanos e técnicos em um só setor encarregado de acompanhar os casos e de atualizar um banco de dados único. Isto evitaria atrasos e interrupções nas investigações como ocorreu com Amarildo, cujo caso só foi transferido para a Divisão de Homicídios quinze dias depois do sumiço do pedreiro.
“Todo desaparecimento é inicialmente considerado voluntário, ou decorrente de doença mental, até que informações da família ofereçam pistas à polícia de que pode ter sido homicídio” lembra Michel Misse. Só neste caso, a polícia começará a investigar. Mas nem sempre isto ocorre: “se foi assassinato, por achar que não vale a pena, eles preferem aguardar o aparecimento do cadáver para só então instaurar o inquérito”.
Foto: William de OliveiraEnquanto isto, as famílias sofrem em silêncio. Maria Lúcia Nunes Guerreiro, 63 anos, também moradora da Rocinha, vive a base de antidepressivos desde o desaparecimento de seu filho Lúcio, em maio de 2003. Lúcio, 23, era moto-táxi da comunidade e desapareceu durante uma corrida a Vila Isabel. A última vez que falou com a mãe, informou estar barrado em uma blitz policial, mas que retornava em casa dentro de trinta minutos. Inquieta como atraso do filho, Lúcia ligou novamente e desta vez atendeu um homem se identificando como policial, que após insultá-la teria ordenado a execução de seu filho, com ela na linha. A aposentada correu a delegacias, hospitais assim como ao Instituto Médico Legal atrás de alguma informação, sem resultado. “Eu não tenho mais Natal, Ano Novo, nem mais nada, choro todos os dias” diz Lúcia, emocionada. “Gostaria de ter uma comprovação de que ele está vivo ou morto, pois se morto queria celebrar uma missa”.
Lúcia chegou a registrar o desaparecimento na 20º DP, a prestar depoimento na Corregedoria Geral Unificada e no Setor de Descobertas da Polícia Civil. Mas sentiu-se pouco amparada nos procedimentos e lamenta que, na época, não tenha tido contato com alguma organização de direitos humanos por falta de informação. A aposentada chegou a receber uma carta anônima, indicando a localização do corpo e atribuindo o crime ao tráfico, sem que este elemento tenha feito avançar as investigações. Com a repercussão que ganhou o caso do pedreiro Amarildo, Lúcia tem hoje esperanças que o seu seja reaberto.

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