Moradores de favelas discutem drogas
Expandir o debate sobre drogas e dar visibilidade a opiniões que são invisíveis quando as políticas públicas são formuladas: esse é objetivo dos encontros “Chega aí: vamos falar sobre drogas?”, que ocorreram nos meses de junho, julho e agosto em diferentes comunidades do Rio de Janeiro.
Os eventos foram organizados pelo Núcleo de Drogas e Saúde Mental do Viva Rio e levantaram questões que servirão de pauta para o seminário que será realizado na Escola de Magistratura do Rio – EMERJ, dia 24 de outubro, a fim de discutir a política de drogas vigente na presença de policiais, promotores, assistentes sociais, profissionais de saúde, juízes e desembargadores.
Foi possível ouvir pessoas que diariamente convivem com o uso de drogas, o comércio das substâncias e a política de repressão e construir coletivamente saberes sobre a temática”, informou a coordenadora da Rede de Relacionamento do Viva Rio Daiana Albino.
Durante os encontros, havia o esforço por parte dos organizadores em deixar as pessoas livres para expor suas opiniões, sem julgamentos. Os facilitadores provocaram as discussões através de perguntas e mediaram a conversa.
As comunidades visitadas em junho foram Maré e Alemão. Em julho, foi a vez de Acari e Rocinha receberem a roda de conversa e em agosto, o encontro “Chega aí” foi realizado no Cantagalo.
Jovem de favela tem oportunidades?
Na Nave do Conhecimento do Complexo do Alemão, o que chamou a atenção foi a participação de crianças e adolescentes na roda. O primeiro a pedir a palavra foi Pedro Rocha*, estudante e morador do local, com apenas 14 anos. Segundo ele, é comum ver adolescentes que engravidam e saem de casa com problemas com a família e afirmou já ter visto gente falando que prefere ver os filhos envolvidos com o tráfico do que passando fome. “Às vezes vejo crianças e adolescentes com armas na mão. Também tenho amigos da minha idade que já são usuários e não conseguem largar a droga por já estarem viciados”, lamentou o menino.
Outro morador da comunidade, Raphael Barbosa*, disse que há a proximidade com a droga, já que sabe onde ela é vendida, mas enxerga nos projetos da favela a melhor forma de manter o jovem saudável e fora do crime. Raphael fez oficinas de capacitação em Audiovisual na TV Verde, um projeto da Secretaria Municipal do Meio Ambiente (SMAC). Marisa Santiago* é tutora do “Caminho melhor jovem” e também esteve presente no evento do Alemão. Ela trabalha com adolescentes que querem sair do mundo das drogas e acredita que a escola não está preparada para ouvir o jovem. Marisa destacou o potencial da pessoa que, mesmo com pouca idade, possui boas habilidades de articulação e gestão dentro do comércio de substâncias ilícitas, mas por não ter o ensino completo, não encontra outra perspectiva de vida.
O morador Fábio Andrade*, no encontro realizado na Vila Olímpica da Maré (VOM), disse acreditar que o problema do vício em drogas vai além da substância em si. É motivado pela miséria, desemprego, falta de oportunidade e perspectiva dos jovens, e a forma que cada um lida com as frustrações da vida.
Guerra às drogas
Mesmo com apenas oito anos, a pequena Laura Silva * participou da roda de conversa do Complexo do Alemão, onde lamentou a tristeza das mães da favela que perdem seus filhos ainda novos em meio a essa Guerra às drogas. Esse foi o caso de sua tia, que perdeu o filho em junho por conta de uma operação na favela. O menino, de 15 anos, tinha envolvimento com o tráfico.
No encontro realizado na Biblioteca Parque da Rocinha C4, Cláudio Napoleão, morador e articulador do Viva Rio no Cantagalo, acredita na relação entre a falta de oportunidade aos jovens e a atuação destes no tráfico de drogas. “Nunca esqueço de um menino que eu vi crescer e entrou no tráfico aos 14. Eu insistia para ele sair e ele disse que sairia se eu arrumasse um emprego para ele. Eu não consegui e na semana seguinte, ele foi morto em uma operação policial”, lamentou.
Cláudio falou um pouco de sua vivência no Cantagalo. Ele, que nasceu nos anos 60, disse que das cem crianças que cresceram brincando com ele na favela, hoje estão vivos cerca de seis. A maioria morreu vítima de tiro.
Em Acari, a moradora Ana Barreto* afirmou ser a favor da legalização e contra a “liberação” das drogas, para que se possa ter um maior controle no comércio dessas substâncias. “Essa semana houve uma morte violenta na comunidade. Moradores, envolvidos ou não com o tráfico e policiais são mortos constantemente, na frente de crianças ou quem estiver passando na rua. Acham que por sermos da favela já nos acostumamos com isso, mas não é verdade, sempre dói. Tenho um irmão que é envolvido com drogas e toda vez que tem operação a gente pensa que pode ser a vez dele. Ontem tomei um susto porque o rapaz que morreu era muito parecido com ele, até confundi por um momento”, contou Ana.
Estigmas do morador de favela
A tutora Lúcia Santiago*, que trabalha no Alemão mas não é moradora de favela, afirma que é na classe mais rica onde ela vê uma maior variedade de drogas e mais gente consumindo. “Enquanto os usuários de drogas na favela são chamados de traficantes, drogados ou ‘cracudos’, quando ele se encontra na zona sul é chamado de dependente químico”, comentou a jovem.
De acordo com a ativista social Márcia Vasconcellos, 79 anos, que esteve presente no encontro em Acari, faltam políticas públicas eficientes, que dêem a mesma assistência a quem vive na favela do que quem vive nas zonas mais nobres da cidade. Ela, que é moradora da favela da Cruzada, vê a matança dos jovens de periferia como assustadora e acredita que a legalização das drogas é uma forma de botar norma. As Olimpíadas, segundo a senhora, vão deixar legado só para alguns bairros da classe média, nenhum para a favela. “Há duas cidades diferentes no Rio de Janeiro”.
Cláudio Napoleão lembrou, na Biblioteca Parque da Rocinha C4, da dificuldade que era para ele arranjar um trabalho quando percebiam, na entrevista, que sua rua ficava em uma favela. A partir de então, ele começou a dar o endereço de outros familiares que não moram com ele, para fugir do estigma que envolve os moradores de favela e conseguir um emprego.
Consumo de drogas na sociedade
Seu Jocelino Porto, de 70 anos, esteve presente no debate em Acari e afirmou que na favela onde mora, em Rocha Miranda, sempre teve comércio de drogas, mas com o crescimento da favela houve aumento também na repressão. Seu Jocelino afirmou que na sua idade nunca viu greve de droga e acredita que a polícia nunca vai dar um fim a tais substâncias.
Dona Márcia, também em Acari, garantiu que a informação circula cada vez mais entre crianças e adolescente com as novas tecnologias, e que é inútil fingir que drogas não existem ou achar que vão acabar. “Não dá para esconder, é preciso instruir essas crianças”, informou a senhora.
Seu Jocelino acredita que a principal causa da proibição do comércio de certas drogas é o interesse econômico “A indústria armamentícia quer vender, hoje há uma sociedade do consumo onde valemos o que consumimos”, informou. Dona Márcia também acredita que a principal motivação da Guerra às drogas é a ambição por dinheiro, e enfatizou que as principais vítimas são as crianças negras e da favela. “São os nossos meninos e meninas que estão morrendo”, afirmou.
Saúde e Redução de danos
Na Maré, a agente comunitária de saúde que atua no território, Helena Oliveira, afirmou que dos seus seis filhos, apenas um teve envolvimento com droga. Ele era viciado em crack e Helena chegou a buscá-lo debaixo da ponte nesse período. Hoje, ele voltou para casa e conseguiu voltar a trabalhar, deixou o vício do crack e faz uso moderado de maconha.
No Cantagalo, a agente comunitária de saúde Tatiane Pacheco contou um pouco sua rotina de cuidados com os pacientes usuários de drogas e de alguns que têm tuberculose e precisam de medicamentos diários. Disse que é preciso ter paciência, persistência e carinho com essas pessoas. E oferecer orientação para que o usuário tenha mais proteção e não ponha tanto em risco sua saúde ao fazer uso de alguma droga.
Também esteve presente no encontro do Cantagalo o agente redutor de danos Dirceu Alves, que atua em Copacabana. Ele destacou que é grande nessa região a concentração de moradores de rua, e ele como agente redutor de danos, além de fazer o elo entre o usuário e a equipe de saúde, também conversa e orienta essas pessoas a adotarem hábitos mais saudáveis, mesmo que ainda fazendo o uso de alguma substância entorpecente “O foco do tratamento é oferecer qualidade de vida”, afirmou o agente.
Além deles, Lídia Di Fabrizio, voluntária do projeto “Terapia do Abraço”, que trabalha com usuários de crack no Jacarezinho, participou do evento. Ela acredita no carinho, no toque e no amor como a melhor forma de tratar o usuário de drogas que se encontra em um nível avançado de vício.
A droga não nasce na favela
“Quem chega de jatinho na Colômbia ou na Bolívia para buscar a droga não é o traficante da favela, são moradores ricos do asfalto”, destacou a ativista Márcia Vasconcellos, em Acari. Também na roda de conversa, a aposentada Marina Costa disse acreditar que o conceito de droga é bem relativo e que há hipocrisia diante do tema: “O Estado diz que quem é usuário de drogas contribui para o tráfico, mas eles sabem que as grandes plantações de maconha não nascem na favela. E o agrotóxico, que é uma droga que vem causando cada vez mais câncer nas pessoas, é incentivado pelo governo”, alertou.
No Complexo do Alemão, o morador Maicon Barreto*, advogado criminalista, acredita que é preciso discutir a formação do profissional militar que vai agir dentro da comunidade. Ele enxerga no comércio de substâncias ilícitas na favela como “uma mínima parte do processo do tráfico de drogas, articulado por pessoas de ‘colarinho branco’, que são as que lucram de verdade com a venda dessas drogas”.
Até o dia do seminário, 24 de outubro, haverá mais encontros em outras favelas para o tema continuar a ser debatido. O objetivo é que as questões da rotina dos moradores de favela pautem as políticas públicas, que são formuladas por magistrados e intelectuais que estão distantes dos problemas que envolvem o tema “drogas” na periferia.
*Os nomes foram modificados para evitar a exposição dos moradores
(Texto: Deborah Athila | Fotos: Lucas Almeida, Tamiris Barcellos, Paulo Barros e Amaury Alves)