Rocinha vive rotina da violência
Moro na Rocinha há 43 anos e nunca ouvi tantos tiros diários desde a guerra vivenciada em 2004, com a disputa de facções rivais. O tiroteio voltou a fazer parte da rotina de uma das maiores favelas do Brasil. Sei que isso não acontece só na Rocinha, porque leio os jornais e acompanho os relatos de moradores da Maré, do Alemão e de outras comunidades consideradas “pacificadas”.
Esta semana fez três anos que a Rocinha foi ocupada pelas forças de pacificação ao mesmo tempo em que completa uma semana de violência. Todos os dias foram marcados pelo medo dos intensos tiroteios. Não é fácil viver no meio de uma guerra travada como essa. O que devemos fazer para levar nossos filhos à escola? O que devemos fazer pra ter mais segurança? Como vamos sair para trabalhar? Escolas e creches não abrem. Equipamentos comunitários, comércio e instituições públicas também não.
É difícil acordar com o som do helicóptero, logo após os tiros e os fogos. A trilha sonora do horror ainda inclui os latidos de cachorros, a gritaria das crianças e, às vezes, alguns gritos de adultos. Sinto minha casa tremer com a passagem dos helicópteros dando seus voos rasantes pelas nossas lajes. Graças a Deus não houve uma tragédia maior. Não quero imaginar o que aconteceria se um deles caísse em cima das casas.
Eu aprendi que quando os tiros diminuem, o perigo aumenta. Essa é a hora em que o morador da favela sai de sua cama, ou de seu abrigo, achando que a situação acalmou… mas quando se está despreocupado, o pior acontece. Já vi conhecidos serem atingidos por causa dessa falsa sensação de paz. Para se andar pelos becos e vielas da favela é preciso estar com o alerta ligado todo tempo, independente de o céu estar repleto de estrelas ou infestado de balas traçantes.
Depois do tiroteio, se ninguém foi alvejado por uma bala perdida, chega a hora de calcular os prejuízos, de contar os furos nas paredes, nas portas e nos produtos expostos dentro das lojas, que foram destruídos. Até hoje, ninguém pagou esse prejuízo. Eu presenciei uma cena que me lembrou as imagens da guerra no Iraque: uma moto pegando fogo no centro da Rua 2. O morador ficou no prejuízo, aliviado por estar ileso. Mas outro morador não teve essa mesma sorte… ele foi morto quando saiu para jogar seu lixo fora, há cerca de dois meses.
O medo se instaurou na Rocinha e os moradores estão indignados com a falta de paz. Só nós sabemos os riscos que convivemos todos os dias. É impossível resgatar a cidadania e trazer a paz para lugares abandonados por décadas apenas usando a força policial.
Ao andar pelas ruas da minha comunidade, ainda fico assustado com as dificuldades da vida do morador de favela. Fico me perguntando o porquê de tanta desigualdade. Durmo sem luz e acordo sem água no meio do tiroteio. Tento entender o motivo da violência. Por que as pessoas escolhem a vida da violência e da marginalização?
Depois da experiência de três anos de ocupação, fica claro que a pacificação não é apenas uma questão de polícia. Ela deveria englobar também a presença do Estado e o lado social. O trabalho precisa ir mais além para chegar na base. Precisa incluir investimentos na educação, em saneamento, moradia e na criação de oportunidades para a transformação social.