Favelas lutam por representatividade
O lançamento da publicação “Cartografia Social da Maré”, prevista para acontecer até o início de abril é uma realização da Federação de Órgãos para Assistência Social e Educacional (Fase) e ONGs do Complexo da Maré cujo texto joga luz sobre um tema crucial para algumas localidades da cidade: a falta de visibilidade para temas específicos das favelas. Apesar de ser uma das cidades mais famosas do Brasil, no Rio há bairros e comunidades que ainda são invisíveis. Os chamados “vazios cartográficos” significam a falta de representação de algumas comunidades nos mapas oficiais da cidade, o que dificulta tanto a chegada de serviços quanto a contagem total da população.
Para tentar diminuir o impacto desta falta de visibilidade e, especialmente destacar pautas específicas sobre as favelas, ONGs e coletivos têm se reunido para mapear por conta própria suas comunidades e problemas. Na Maré, o projeto “Olhares dos Jovens da Maré sobre o Direito à Cidade e às Injustiças Ambientais” surgiu da articulação entre as ONGs Conexão G e Fase a partir da necessidade de conhecer e expor o olhar das juventudes negras, pobres e moradoras de favelas.
O estudante Allan Santos diz que o objetivo foi criar um mapa onde ele e seus vizinhos, moradores da Maré, se vissem representados. “Tivemos a oportunidade de elencar diversas formas de desigualdade e violações da cidade. Há espaços da favela que nos mapas oficias são mostrados como uma ‘floresta’, o que não é verdade. Nestes locais há ruas e casas com pessoas dignas e muitas histórias”. O jovem acredita que umas das vantagens do projeto é a criação coletiva do mapa por pessoas que fazem parte daquele contexto e não por alguém de fora.
O historiador Fransérgio Goulart alega que, a pedido da Prefeitura, possivelmente por causa dos megaeventos como Copa e Olimpíadas, desde 2011 a palavra “favela” foi omitida ou substituída por “morro” nos mapas do Google, o que sugere que tais regiões não são habitadas. Mas Luiz Roberto Arueira, diretor da Diretoria de Informações da Cidade (DIC), do IPP, contesta a informação. Ele garante que existem dezenas de mapas oficiais da cidade com enfoques variados. Todos se baseiam em uma plataforma única, que tem duas origens: a Cartografia da Cidade e as atualizações que são feitas continuamente por sistemas e processos da Prefeitura.
Mas o desenrolar da discussão está longe do fim, já que nem próprios órgãos oficiais chegam a um acordo quando o assunto é a contagem das favelas cariocas. Enquanto o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) contabilizou em seu último Censo, em 2010, 763 favelas, classificadas como “aglomerados subnormais”, o número calculado pelo Instituto Pereira Passos (IPP), órgão ligado à Prefeitura, é de 632 favelas.
Fransérgio é um dos consultores do projeto da Maré e diz que, diferentemente das contagens “oficiais”, as cartografias sociais fortalecem as lutas por direitos identitários, territoriais e por políticas públicas. Os jovens que participaram da iniciativa de mapeamento já tinham sido treinados pela Fase, com aulas de direito à cidade e justiça ambiental. Depois disso vieram as oficinas práticas de cartografia social. O principal objetivo do projeto é apresentar como a juventude da favela percebe, vive e constrói seu território. Ele também acredita que a cartografia acaba se tornando uma ferramenta de luta pelas pessoas que trabalharam nela, já que elas passam a saber o que a favela precisa e exigem mudanças.
Falta de investimento tira iniciativa do ar
Outro exemplo de projeto colaborativo de inclusão das favelas e de seu morador nos mapas da cidade foi o Wikimapa, tecnologia social criada pelo Programa Rede Jovem em 2009. O objetivo era dar voz à áreas estigmatizadas, destacar potenciais sociais, culturais e econômicos, identificar vocações e potências destes territórios e tirá-los da invisibilidade social. O Wikimapa chegou a se expandir até a Baixada Fluminense.
Apesar da proposta inovadora, o projeto não teve fôlego para continuar o trabalho sem receber investimentos e encerrou suas atividades no mês passado. A diretora estratégica do programa, Patrícia Azevedo, explica que o aumento das políticas de transferência de renda do país e o interesse comercial pelo mapeamento dessas áreas começou a surgir entre outras empresas atuantes no ramo, como Google e Microsoft. Estes fatores acabaram tornando a competitividade do Wikimapa muito baixa. “Quando lançado, em 2009, não havia qualquer interesse das grandes empresas ou poder público em mapear a favela pois eles não queriam fazer investimentos comerciais e econômicos na favela”, elucida.
Mas com o decorrer do tempo o interesse foi crescendo e algumas organizações sociais chegaram a copiar a metodologia do Wikimapa, mas sem investir na matriz. “Eles criaram seus próprios mapas, copiaram nosso método e acabamos perdendo forças no meio desse mercado. Enfim, perdemos a motivação para continuar nessa disputa desleal e decidimos nos juntar a outras organizações e usar nossa experiência para fortalecer outras áreas”, lamenta.
Um dos resultados significativos do projeto é o documentário “Todo Mapa tem um discurso”, produzido também pela Rede Jovem a partir da experiência com situações problemáticas enfrentadas pelo projeto Wikimapa, com questões simbólicas e práticas sobre as regiões marginalizadas fora dos mapas oficiais da cidade em forma de vídeo. Ao contrário do site que foi descontinuado, o documentário ainda poderá ser exibido em eventos e festivais. Segundo Patrícia, “as reflexões importantíssimas, que são suscitadas no documentário, não perderão sua força, pois sobrevivem mesmo sem financiamento, através do interesse de indivíduos e organizações dispostas em debatê-las”, garante.
Atuando em outra ponta, há a iniciativa do IPP que facilita a inserção das comunidades no mapa da cidade. O aplicativo Mapa Participativo do Rio de Janeiro, lançado em agosto de 2014, é público e aberto aos cidadãos, que podem atualizá-lo com informações sobre outros equipamentos e estabelecimentos, além dos já cadastrados nos sistemas da Prefeitura do Rio. Hoje o Mapa Participativo contém pontos de referência das comunidades de Manguinhos e Vila Kennedy marcados pelos moradores através da nova ferramenta.
Trabalho em progresso
Ainda não foram relacionadas pelo IPP, mas estão em processo de identificação, 347 comunidades do Rio de Janeiro. Destas, 72 comunidades encontram-se nas áreas de UPP do Caju, Cerro-Corá, Barreira do Vasco/Tuiuti, Manguinhos, Jacarezinho, Complexo do Lins e Vila Kennedy. Na Rocinha, o processo está paralisado no momento por causa dos conflitos que vêm acontecendo desde o final do ano passado.
Fora das áreas pacificadas, 275 comunidades serão estudadas até abril de 2015, segundo o Instituto. Certas peculiaridades das favelas, como a alta densidade de ocupação e a rede irregular de logradouros dificultam a identificação e a própria definição do que deveria ser considerado um logradouro e tornam o mapeamento mais demorado e difícil.










