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Saneamento é básico, mas não existe

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 Foto: Rodrigues Moura

Nas favelas da região metropolitana do Rio de Janeiro, o saneamento continua longe do básico. Dos serviços definidos pela Lei do Saneamento Básico, o esgotamento é o que tem a pior situação. A coleta engatinha, o esgoto a céu aberto ainda é uma realidade e o tratamento está perto de zero. Para Carlos Minc, secretário estadual de Ambiente até janeiro de 2014, o saneamento nas favelas é “um desastre ecológico de grandes proporções”. Aspásia Camargo, presidente da Comissão de Saneamento Ambiental da Assembleia Legislativa (Alerj), completa: “absolutamente todas as favelas têm saneamento de Idade Média”.

De fato, o que os correspondentes e a redação do Viva Favela constataram em comunidades como Urucânia, Fallet, Rocinha, Manguinhos, Cantagalo, Rio das Pedras e Boa Vista (Niterói), é que a falta de saneamento continua trazendo transtorno e doenças à população. Raul Pinho, engenheiro e conselheiro do Instituto Trata Brasil, explica que o esgotamento em favelas não existe porque não há tratamento. “O que sai das casas não está ligado à rede de esgoto da cidade, e então vai para os rios ou para o mar”, diz. Ouvimos líderes comunitários de mais de dez favelas e, em algumas delas, descobrimos que até existe alguma ligação com a rede pública. No entanto, como o esgoto é recolhido juntamente com a água da chuva, ele não é tratado.

Wagner Victer, presidente da Cedae, admite que o tratamento é o grande problema no esgotamento das favelas. Mas para ele a situação não é tão ruim quanto pode parecer: poucos lugares ainda teriam línguas negras e doenças relacionadas à falta de saneamento. Victer acredita que o projeto “Sena Limpa”, as obras do PAC (Programa de Aceleração do Crescimento) e a ampliação das estações de tratamento de esgoto indicariam um caminho de melhora.

Quando o tema é coleta de lixo e fornecimento de água, a situação parece ser um pouco melhor. Mas só um pouco, pois a qualidade do serviço ainda deixar muito a desejar. Uma velha conhecida das favelas, a falta d’água, continua afetando moradores da Rocinha, Picapau, Rio das Pedras, Boa Vista, Casa Branca, entre muitos outros locais. Na Baixada, mesmo entre as casas ligadas à rede pública, o problema da falta d’água também é crônico. "A questão da água na Baixada é um caso de polícia. Como é possível que falte água aqui no Guandu, se é daqui que ela sai? Isso é uma manobra para abastecer o Rio de Janeiro", denuncia Sidney Neves, presidente da Associação de Moradores de Vila Operária, em Duque de Caxias.

Minc lembra que o serviço de recolhimento de lixo também é falho. “Como não existe coleta adequada, as poucas tubulações que existem entopem e deixam as comunidades sujas de lixo e esgoto”, aponta. Na apuração da Revista #18, a equipe do Viva Favela percebeu que as instituições responsáveis pela coleta do lixo costumam chegar às comunidades, mas a falta de pessoal, de lixeiras e caçambas, além da pouca colaboração da população, continuam deixando o serviço longe do ideal.

Os números do saneamento

Quem olha os dados do Censo 2010, do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), pode concluir que o saneamento em favelas ou “aglomerados subnormais”, como são chamados pelo Instituto, não é um problema tão grande. O IBGE caracteriza como aglomerados subnormais os terrenos que reúnem “um mínimo de 51 casas com ocupação ilegal da terra, além de apresentar urbanização e oferta de serviços públicos precários”. O Censo 2010 indica que das 616.814 residências que ocupariam tais áreas no estado, 78% estariam ligadas à rede geral de esgoto ou águas pluviais, 91% à rede geral de distribuição de água e 96% aos serviços de limpeza.

Raul Pinho e Carlos Minc, no entanto, alertam: os dados do Censo nada têm a ver com a realidade.  “Quando o recenseador pergunta para o morador se a casa dele tem esgoto, o morador pensa só que o esgoto está saindo da sua casa e considera que tem rede. Mas ele não se importa para onde está indo esse material ao sair da sua casa. Isso faz parte da cultura de afastamento da população”, explica Pinho. Mesmo trazendo dados subdimensionados, o Censo 2010 contabiliza que, no estado do Rio, 63.188 famílias moradoras de aglomerados subnormais estariam despejando seu esgoto em locais inadequados, como fossas rudimentares, valas, rios, lagos ou mar.

Outra fonte é o Sistema Nacional de Informações sobre o Saneamento (SNIS), do Ministério das Cidades. Ele mostrou, em 2010, que entre as 100 maiores cidades do Brasil aparecem alguns municípios fluminenses que estão em situação crítica. Considerando serviços de água e esgoto, Belford Roxo ficou em 77ª lugar, São Gonçalo em 75º, São João de Meriti em 73º, Nova Iguaçu em 71º e Duque de Caxias em 69º. A situação é um pouco melhor no Rio de Janeiro (37º) e em Volta Redonda (29º), e melhor ainda em Niterói (9º).

Pinho, no entanto, faz também ressalvas sobre os dados do SNIS. “A pesquisa é feita a partir dos dados das concessionárias e estes dados podem não ser confiáveis”, diz. Além disso, por se basear nos dados das concessionárias, o universo da população abordado é aquele atendido pelas mesmas – a população sem o serviço fica de fora dos dados.

Ninguém quer o abacaxi

O problema do saneamento nas favelas tem, certamente, raízes em questões institucionais. A engenheira Renata de Faria Rocha, mestre em Saúde Ambiental pela Universidade de São Paulo (USP), afirma que o país ficou quase 30 anos sem investimento em redes de esgoto. “Na década de 70, o país não tinha água para beber, e este foi o foco da Política Nacional de Saneamento Básico. Foi um problema não ter investido também em esgoto, porque com o crescimento das cidades, a poluição foi muito rápida. Somente no final da década de 90 é que algo começou a ser feito”, relata.

No Rio, a última década se caracterizou por um jogo de empurra-empurra entre Prefeitura e Governo Estadual no que diz respeito ao saneamento. Até 2007, este tipo de serviço nas favelas era responsabilidade da Cedae. Naquele ano, o encargo passou para as mãos da Prefeitura, sob o comando de César Maia, juntamente com o saneamento da Zona Oeste. Em 2012, Eduardo Paes colocou novamente a questão na mesa e, atualmente, as redes de favelas com UPP são operadas pela Cedae, as da Área de Planejamento 5 (região que abrange Bangu, Campo Grande, Santa Cruz, Realengo e Guaratiba) pela concessionária Foz Águas 5 (que tem, desde 2012, um contrato de 30 anos) e as das  favelas sem UPP pela Prefeitura, através da Fundação Rio Águas. A instalação de novas redes é, segundo lei federal, responsabilidade do município – o que no Rio de Janeiro é feito através do projeto “Morar Carioca”.

Esta configuração gera inquietação entre os especialistas. Uma máxima entre eles é que um prestador de serviço que cuida da água deve também cuidar do esgoto. Não é o caso da Cedae. Ela é atualmente responsável pelo abastecimento de água de 64 dos 92 municípios fluminenses e pela rede de esgoto em dois. A cobrança por serviços não prestados, a ausência de contrato com as prefeituras e as revisões tarifárias ilegais são algumas acusações frequentemente direcionadas à empresa pública.

Em meio à confusão, parece não haver regras para o pagamento do serviço. Algumas comunidades pagam por água e esgoto, mas não têm coleta deste último, outras não pagam nada, mas recebem algum tipo de serviço. Em Casa Branca, por exemplo, a população não paga pelo serviço. Para Marcus Vinicius Belizário, presidente da associação de moradores, seria melhor se pagasse. “Assim, poderíamos reivindicar um melhor serviço, que hoje envolve falta de água e falta de manutenção nas tubulações de esgoto”, diz.

Ocupação desordenada dificulta implantação de redes

O elevado adensamento, a pavimentação irregular e as estreitas vielas são obstáculos concretos à realização dos serviços de saneamento.  O sistema unitário, onde as águas da chuva e o esgoto são recolhidos em um mesmo canal, acaba sendo a solução encontrada para implantar o saneamento nas comunidades. O sistema separador absoluto, em que os dois materiais são recolhidos separadamente, seria impossível de ser implantado nas favelas, na opinião de Wagner Victer e de Raul Pinho.

Renata de Faria Rocha, especialista na implantação de redes de esgoto e água em favelas, admite que o sistema separador absoluto exige muitos custos sociais e financeiros. Por outro lado, trabalhar com a água que chega junto do esgoto no sistema unitário também pode ser muito custoso. A solução: avaliar caso a caso. “A favela não deve ser tratada como um bairro, ela é peculiar. E cada favela tem sua peculiaridade. Por isso, não existe uma só solução. É preciso uma adaptação”, aponta Renata, lembrando a importância do diálogo com a comunidade e da queda dos preconceitos por parte daqueles que planejam a obra.

Favelas refletem saneamento nacional falido

O SNIS 2011 mostrou que 48,1% da população brasileira tem coleta de esgoto e apenas 37,5% recebem algum tipo de tratamento – o que não quer dizer que seja o ideal. Em visita ao Brasil, em dezembro, a relatora especial das Nações Unidas para o Direito à Água e Saneamento, Catarina de Albuquerque, lembrou que o Brasil está entre os 10 países onde mais faltam banheiros. De acordo com a ONU, 7,2 milhões de pessoas estariam nesta condição.

Catarina apontou também que a falta de saneamento tem consequências diretas na saúde da população: a cada US$1 investido em esgoto, deixa-se de gastar US$4 em saúde. No Brasil, foram 400 mil pessoas internadas com diarréia em 2011, sendo que as crianças com até cinco anos de idade são as maiores vítimas.

Para Raul Pinho, o Brasil caminha, mas a passos mais lentos que o necessário. Perguntado se a máxima “obra debaixo de terra não dá voto” é verdadeira, ele concorda. “Eu sempre digo também que os políticos não devem fazer saneamento como política, mas sim uma política de saneamento”, diz. Se a universalização é possível? “Só se for daqui a cem anos”, responde.

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