Single Blog Title

This is a single blog caption

Luiz Eduardo Soares fala sobre peça “Entrevista com um Vândalo”

Share on Facebook0Tweet about this on Twitter


Arquivo pessoal

Por Juliana Portella

 

Imagine um triângulo amoroso formado por um policial infiltrado, uma escritora e um militante blackbloc. Foi esta a trama idealizada Luiz Eduardo Soares na peça “Entrevista com um Vândalo”, que ficou em cartaz, em curta temporada em junho, no Teatro Sérgio Porto, na cidade do Rio de Janeiro. Soares assina o texto, e Marcus Faustini, a direção. Os atores Márcio Vito, Valquíria Oliveira e Ian Capillé também se revezam no papel de um governador, uma secretária e um coronel da PM. O desejo dos realizadores do espetáculo é que ele tenha uma restreia em um futuro próximo, mas ainda não há nada confirmado.                         

Coordenador de Segurança, Justiça e Cidadania do Estado do Rio entre 1999 e 2000, e secretário nacional de Segurança Pública em 2003, Luiz Eduardo Soares acumula títulos e realizações em uma trajetória que combina  produção intelectual com ativismo político. Autor dos livros “Meu casaco de general” e “Elite da tropa”, o cientista social fala, em entrevista por email à correspondente do Viva Favela Juliana Portella, sobre o processo criativo que levou ao texto da peça e suas opiniões sobre as manifestações que marcaram o país em 2013. 

 

Qual foi a intenção principal da peça?

Em “Entrevista com Vândalo”, a intenção é contar uma história, desvendando os bastidores do poder. A ficção pode nos ajudar a tirar as máscaras que vestimos no cotidiano, adornadas por nossos frívolos narcisismos e crenças dogmáticas. A ficção pode apontar o caminho da desautomatização, para voltarmos a pensar e sentir, exercitando a liberdade.

Como se deu o processo criativo de produção da peça? 

Comecei a escrever a peça em setembro de 2013, quando a poeira de junho (quando se iniciaram as manifestações de 2013) começava a baixar. Minha intenção era fazer no teatro o que tentei sem sucesso na vida real: colocar frente a frente, sem máscaras e armas, sem pedras e fardas, policiais e adeptos da tática blackbloc, homens e mulheres. Acredito no poder do encontro. Depois da catarse, talvez todos compreendessem que compartilham a mesma indignação e que a fonte de seu ódio é a mesma: injustiças, iniquidades, a hipocrisia da representação política tradicional, hoje em ruínas, o desrespeito com que são tratados dentro das instituições policiais ou, os civis, pelas instituições policiais e pelo Estado, que não cumpre suas obrigações constitucionais. Talvez o encontro franco os levasse a descobrir que são irmãos e que acabaram sendo conduzidos por uma série de razões, entre as quais seus próprios equívocos, a se atacar mutuamente como se fossem inimigos. O que aconteceu no Brasil em junho de 2013 foi importante demais para que se perca em cenas de violência e impotência, nas quais os dois lados se refletem, mimeticamente, em vez de aproveitarem a chance histórica de refletir sobre o Brasil, amadurecer, unir forças e contribuir para a construção de uma democracia digna deste nome.    


Divulgação

Como você construiu os personagens?

Para escrever a peça, não fiz propriamente entrevistas, nem tinha a intenção de escrever quando dialoguei com as pessoas, ao longo do tempo. Ocorreu o inverso. Foram essas conversas que me levaram a sentir a necessidade de escrever a peça, uma vez que o senso comum cada vez mais reforçava generalizações reducionistas, sem contraponto que não fosse o endosso acrítico da tática blackbloc. O personagem policial, tão crítico e reflexivo, é muito mais do que se supõe. Recebo, diariamente, em meu site pessoal, denúncias de violações sofridas por policiais militares, cometidas por suas próprias instituições. Uma pesquisa que realizei em 2009 com Marcos Rolim e Silvia Ramos (pesquisadores em Ciências Sociais), entrevistando 64.120 profissionais da segurança pública em todo o país, mostrou que mais de 70% se afirmaram contrários ao atual modelo policial. Essas questões foram essenciais no processo criativo.

Dos movimentos, considero apenas minha observação direta, os dois gêneros estão igualmente representados, inclusive entre os grupos que adotam a tática blackbloc. A personagem feminina manobra o desejo dos dois homens e é mais cerebral talvez porque eu perceba, intuitivamente, que a história de dominação a que as mulheres foram submetidas as situe em posição estratégica para liderar a resistência libertária.   

“Eu sou essa ventania, que atravessa essas gavetas e continua soprando” (fala do personagem “blackbloc”)

O que o inspirou para a construção de um texto audacioso e com falas tão bem argumentadas?

Sou filho de 1968, minhas bandeiras são libertárias, mas não tenho mais idade para ser ingênuo. Acredito que a realidade agonística (conceito filosófico que diz respeito ao embate de ideias) da vida coletiva, sobretudo em escala global, não se resume à contradição entre capital e trabalho, nem será superada pela dialética redentora. Estou mais próximo de Kant do que de Marx, ou seja, os direitos humanos são o horizonte de minha prática política, estética e intelectual. A luta pelo paraíso social na terra não justifica o desrespeito a um indivíduo. Se o ser humano é fim, não meio, qualquer sonho de mudança política tem de comprometer-se com a qualidade moral do método e realizar, aqui e agora, o princípio projetado nas utopias. É isso o objeto obsessivo de meus escritos, na universidade e no teatro. Esse dilema acompanhou as gerações que precederam a minha, marcou a minha geração e, certamente, permanecerá dividindo opiniões e sensibilidades.   

As operações políticas repressivas trabalharam com a difusão de clichês e estereótipos. Resistir é desnaturalizar o que parece natural. Há sempre uma retórica sob a violência do poder, apelando à razão e aos sentidos com a finalidade de os congelar. Para fazer fluir a vida, é necessário descongelar percepções e animar o pensamento. Pensar é criticar, ou seja, identificar as condições que tornam possível uma determinada realidade. Fazê-lo significa desnaturalizar essa realidade, apresentá-la como uma construção histórica. E tudo o que é historicamente construído, pode ser transformado. “Vandalismo” é uma produção retórica e política conservadora, destinada a dividir o movimento e legitimar a repressão. A peça também é uma produção retórica e política. 


Divulgação

O que você tem a dizer a respeito da identidade de cada personagem?

O policial militar está em crise com a profissão, com a corporação, consigo mesmo, e suas tensões se traduzem na ambiguidade de sua própria tarefa: infiltrar-se como infiltrado em um coletivo de jovens ativistas. O rapaz é adepto da tática blackbloc, odeia a polícia, o Estado, o capitalismo, e deseja destruir tudo o que representa a ordem burguesa. Inspira-se no anarquismo mas não consegue extrair das próprias ideias todas as consequências políticas, intelectuais e pessoais. Eu não diria que ele está em crise consigo mesmo porque ele é a própria crise.

A personagem feminina ocupa o lugar de titereira, puxando as cordinhas para se divertir e extrair prazer de sua incursão na poliandria, digamos assim. Joga seus homens um contra o outro para dominá-los e empurrá-los até os respectivos limites, à beira do abismo, que é um só. Essa personagem feminina abre a janela para que se enxergue a casa de máquinas operando por trás de nosso teatro cotidiano e da construção dramatúrgica. Esse movimento nos enreda a todos, autores, atores, diretor, plateia. Os três personagens tornam possível o trabalho teatral numa pluralidade de dimensões, de tal modo que desejo e política se revelem mutuamente implicados.

“Ele é um vândalo. Esse tipo de acusação arruína um pai de família, desgraça um sobrenome, desmoraliza até a décima geração. Nós precisamos fazer com que vandalismo hoje seja o que foi a sífilis no passado” (fala do personagem “representante do governo”)

 

Como você explica as manifestações? 

As manifestações deram-se em linguagens performáticas. Máscaras desnaturalizaram o caráter teatral da persona que somos nós. Se a rua é política teatral, o teatro pode ser a desteatralização da vida comum, da Pólis, da política. Ao escrever “Entrevista com vândalo”, procurei tratar a cena como espaço da desnaturalização. No dia a dia, iludimo-nos com a crença de que conhecemos a realidade externa e interna, sem perceber que os significados que atribuímos ao que supomos conhecer correspondem a projeções nossas, a construções simbólicas, afetivas e valorativas, que controlamos, na melhor das hipóteses, apenas parcialmente. O mundo à nossa volta é configurado pelos efeitos especiais de nossas expectativas e projeções, em jogos dialógicos com os outros e as mil e uma fontes de informação. Ninguém tem o Graal, nem a chave da verdade. 

Portanto, nos cabe sempre exorcizar dogmas e evitar juízos definitivos, totais e irreversíveis. Podemos nos acercar da complexidade real se nos abrirmos para a pluralidade das vozes e percepções, sem perder o espírito crítico e sempre recusando a arrogância de sábios e mensageiros da verdade. Por isso, vejo beleza nas máscaras dos blackblocs, que nos mostram a onipresença da máscara no cotidiano, mesmo quando trazemos o rosto descoberto. Mas, quando o ódio se autonomiza da experiência que o engendra e se converte em tática, em técnica racionalizada, a bela desnaturalização das máscaras se transforma na tragédia dos blackblocs. Quando a raiva se autonomiza e converte em método de ação, os próprios blackblocs passam a acreditar em suas máscaras e a adotar a mesma linguagem da violência que criticam.      

Você acha que as manifestações influenciaram a política nacional?

Passado mais de um ano das manifestações de junho de 2013, minhas convicções a respeito apenas se reforçaram: placas tectônicas da sociedade brasileira deslocaram-se, e nunca mais seremos os mesmos. O repertório das demandas era e permanece sendo amplo e variado, e o colapso da representação política ao velho estilo não foi revertido. Partidos e políticos tradicionais seguem seu cortejo fúnebre, carregando no andor o cadáver insepulto: a farsa da representação no teatro das iniquidades. O dilema está em transformar as instituições políticas respeitando a Constituição e a institucionalidade democrática, que nos custou tantos sacrifícios, na longa luta contra a ditadura. O diálogo entre as ruas e as instituições é indispensável, mas são raríssimas as lideranças conscientes da gravidade dessa conjuntura e capazes de sacrificar interesses eleitoreiros e carreiristas em nome de um salto de qualidade que salve a legitimidade da democracia.


Marcia Farias

Como você enxerga a participação política e social das periferias,   das UPPS e das reivindicações da juventude? 

Como diz um amigo, todo problema complexo tem uma solução simples, e errada. O Brasil não é para amadores, como ensinou Tom Jobim. Nelson Rodrigues foi brilhante: 500 anos de sofrimento, exploração, violência e desigualdade não se fazem sem muita ciência, competência e sofisticação. Mas o meu resumo seria o seguinte: acabou o sossego da elite branca porque a sociedade redescobriu o potencial de seu protagonismo, e não será mais possível manter as iniquidades, nem mesmo a brutalidade policial, naturalizadas, como se fossem parte da paisagem. E isso tudo porque o Brasil melhorou muito, reduziu desigualdades e expandiu a consciência de que somos todos e todas cidadãs. Nesse contexto, a cultura jogou um papel fundamental, estimulada pelas redes sociais.  

” Você acha que vai acabar com o capitalismo brincando de quebra-quebra com teus amiguinhos na porra do teu bairro, mijando nas calças, fazendo pirraça?” (Fala do personagem “policial”)

Não foi só por 20 centavos. Para você, quais os principal resultados das manifestações?

A sociedade brasileira nunca mais será a mesma depois de junho, porque descobriu seu próprio protagonismo e se identificou com a cidadania como modo de vida. As consequências dessa mudança serão produzidas e percebidas por décadas. Quando ocorrem deslocamentos de placas tectônicas, as vibrações provocam tsunamis e despertam vulcões extintos, alteram dinâmicas climáticas e convulsionam a geografia. Digo isso com renovadas esperanças, mas também uma ponta de preocupação, porque a elite política brasileira, com raríssimas exceções, continua a dar seu espetáculo exuberante de canastrice, indiferença e insensibilidade. 

Fica evidente a crítica ao atual governo do Estado. E se peça chegasse aos olhos do Governador?

Ah! Claro que Cabral não assistiu… Duvido que tenha chegado a ele. Ele já tem sido tão criticado… Deve ter problemas mais importantes com os quais se preocupar. Ele me conhece há muito tempo, porque fui seu professor na Faculdade de Comunicação em 1982. Mas tenho sido crítico de seu governo e qualquer possível simpatia antiga já deve ter evaporado. 

 

Deixe uma resposta

Parceiros