Dia

março 20, 2014

Descaso, abandono e luta em São Conrado

Fotos: Marcello Farias

Areias sujas, águas escuras marcadas pelo despejo de esgoto "In natura", mal cheiro, doenças de pele, além de muita tristeza e indignação. Este é um cenário comum há décadas numa das praias mais belas do Rio de Janeiro, situada no bairro que já foi o metro quadrado mais caro da cidade, São Conrado.

Além dos moradores do próprio bairro, a praia também é frequentada por moradores da Rocinha e Vidigal, comunidades que o cercam. O esgoto produzido por ambas, cujo saneamento é responsabilidade da Cedae e da Fundação Rio Águas, não recebe tratamento adequado e é despejado diretamente no oceano, através de uma tubulação furada no costão da Avenida Niemeyer, que levaria o esgoto da Elevatória de São Conrado para a Elevatória do Leblon.

Outro ponto de despejo acontece diretamente nas areias, abrindo uma língua negra até a água do mar.

Só na Rocinha, a população chega, segundo o IBGE, a 70.000 habitantes, porém a UPMMR (União Pró Melhoramentos da Rocinha), uma das associações de moradores locais, contabiliza mais de 200.000 habitantes na favela, que já foi considerada uma das maiores do mundo.

André do Valle, morador da Rocinha diz que procura frequentar os locais visualmente mais limpos da praia: " Eu procuro ficar na quarta rampa, lá me parece ser mais limpo, mesmo que visualmente".

Além dos moradores da região, a praia de São Conrado também é muito frequentada por surfistas de todos os lugares do Brasil e até estrangeiros. A parte esquerda é conhecida como Cantão, point dos esportistas e que já teve suas maravilhas (dizem ter as ondas mais perfeitas da cidade) cantada nas letras de Gabriel O Pensador, frequentador do Cantão, morador de São Conrado e militante da causa a favor de melhorias do local.

Cansados da situação em que a praia se encontra, totalmente abandonada pelo poder público, um grupo de surfistas local resolveu se manifestar em redes sociais e criaram o movimento "Salvemos São Conrado". Eles postam fotos, relatos e vídeos mostrando para quem quiser o descaso. Em um dos vídeos, Marcello Farias, integrante do movimento e produtor dos vídeos, mostra as crianças da Escolinha de Bodyboard da Rocinha praticando suas atividades nas areias poluídas.



Fabrini Tapajós, também integrante do movimento, conta que a mobilização por parte dos surfistas começou em março de 2012, quando pediram a visita de um programa de TV, em um quadro chamado “Proteste Já!” onde o Secretário de Meio Ambiente Carlos Minc esteve presente prometendo naquele ano a inclusão de São Contado no projeto Sena Limpa, dando inicio às obras no ano de 2012 e com término ao final de 2013. O programa Sena Limpa (o nome faz alusão à loteria de seis dígitos pois originalmente seriam contempladas seis praias) é uma parceria do Governo do Estado com a Prefeitura do Rio através da Secretaria de Meio Ambiente, junto com a Cedae e a Fundação Rio Águas.

Procurada pelo Viva Favela, a Cedae informou em nota que não há atraso nas obras, que começaram oficialmente em setembro de 2013 e cujo prazo de término seria dezembro de 2014. E esclareceu que as obras modernizarão o sistema de esgotamento sanitário da Bacia da praia de São Conrado com a ampliação da Estação Elevatória.

A praia também é point dos praticantes de futebol de areia. Luis Marcelo Oliveira, estudante e adepto do futebol nos fins de semana, lamenta a situação: "Tem dias que o mau cheiro e a areia poluída atrapalham nossa brincadeira. No fim do dia então, que é o momento em que jogamos, é horrível. Já encontrei animal morto em decomposição". Mesmo assim, ele mantém a esperança: "Acredito que com a Copa e com as Olimpíadas isso mude. Mas é uma vergonha o governo tomar atitude por causa de um bando de gringo, e não por nós".

A Rocinha está aguardando o início das obras do Pac 2, que além do teleférico, promete 100% de tratamento do esgoto que hoje desce a céu aberto pela Rua do Valão, e mais a separação de toda a água da chuva, o esgoto e o lixo além de novos coletores.

Falta de saneamento lidera lista de problemas em favela de Bangu

Fotos: Guilherme Junior

Chegar à comunidade Castor de Andrade não é nada fácil. A favela fica na encosta de um morro do bairro de Bangu, zona oeste do Rio de Janeiro, onde pode-se ver casas amontoadas umas sobre as outras disputando espaço com imensas rochas. A subida é íngreme. As ruas de barro seco percorrem toda a comunidade num zigue-zague infinito. O esgoto a céu aberto surge de boa parte das ruas. Ora no meio da passagem, atrapalhando as descidas e subidas dos moradores, ora pelos cantos da rua através dos valões que jorram água escura e mal-cheirosa. Bem na ponta do morro, Dona Vilma Maria Pereira conta que uma vez, ao sair para o trabalho embaixo de chuva, levou um tombo por causa do chão irregular em uma das vielas da favela. "Eu estava descendo o morro para ir para o trabalho, mas caí muito feio, ralei o joelho e me sujei toda. O meu sapato quebrou. Tive que voltar para casa, pois não tinha condições de ir para o serviço daquele jeito", conta.

Perrengues como o de Dona Vilma são constantes na comunidade. A maior reclamação dos moradores está relacionada à falta de saneamento básico, como os esgotos correndo a céu aberto, além das ruas que não são asfaltadas. João Galdino, líder comunitário, diz que existem na comunidade aproximadamente 800 casas e nenhuma possui esgoto coletado corretamente. "As famílias foram chegando e construindo residências sem estudo do solo e nenhuma infra-estrutura. Tiveram que arrumar um jeito de fazer o encanamento de esgoto. Ao longo das ruas vemos canos improvisados, isso quando não nos deparamos com a sujeira jorrada das casas dos moradores diretamente na rua. Temos entrado em contato com a prefeitura para regularizar a coleta de esgoto, mas até agora não tivemos uma resposta. Enviamos um ofício para a subprefeitura de Campo Grande em 2010 e até agora nada. Nossas crianças brincam no meio da água podre e as autoridades não fazem nada para mudar."

Adeílson da Silva, morador da Castor de Andrade há sete anos, improvisa pontes de tábuas de madeira para passar sobre os córregos. "Em época de eleição, recebemos muitos candidatos, mas nenhum resolve nossos problemas. Precisamos que alguém olhe para a gente", suplica. O morador ainda diz que como não há um sistema correto de esgotamento sanitário, em dias de chuva a possibilidade de se contrair uma doença grave como leptospirose ou hepatite A é muito grande.

Dona Vilma, escorada à janela, aponta para as poças de esgoto em frente à sua casa. "Fala-se tanto de Copa do Mundo e esquecem disso aqui. Eu já morei em Vigário Geral e outras comunidades, mas nunca vi nada igual. Aqui não sobe caminhão nem ambulância em caso de emergência. Estamos vivendo numa calamidade", desabafa.



As condições sub-humanas em que vivem os moradores da comunidade Castor de Andrade são apenas um reflexo do crescimento desordenado das cidades brasileiras. A falta de políticas de habitação adequadas evidencia o descaso das autoridades. Em meio a obras de modernização da cidade olímpica, favelas surgem e problemas como a falta de saneamento básico vão se tornando um câncer incurável com metástase em todos os cantos. Na esperança de que dias melhores virão, Dona Vilma Maria, embora fale de problemas, não perde a simpatia ao ser entrevistada. "Os ratos entram em nossas casas o tempo todo. Parece que querem tomar o nosso lugar, mas já disse a eles que a casa é minha e daqui eu não saio", conta dando risadas.

O que é saneamento básico?

Quando se fala em “saneamento básico”, muita gente pensa logo em esgoto. Se uma comunidade tem um sistema que faça os dejetos sanitários saírem das casas por um encanamento e serem transportados a outro lugar, ali, acredita-se, “tem saneamento”. Mas se esse sistema não existe e a água suja fica exposta, formando uma língua negra mal cheirosa, então já se sabe que ali “não tem saneamento”. Isso é parcialmente verdadeiro, mas o saneamento básico vai muito além do esgoto encanado. É preciso se perguntar, por exemplo, para onde este esgoto encanado está sendo levado, se ele será tratado, entre outras questões.

A Organização Mundial de Saúde define o saneamento básico de forma bem abrangente, como "o controle de todos os fatores do meio físico do homem que exercem ou podem exercer efeito deletério sobre o seu bem-estar físico, mental ou social”.

Já o governo brasileiro, na lei 11.445, conhecida como “Lei do Saneamento Básico”, foi mais específico, e determinou que saneamento básico é o “conjunto de serviços, infraestruturas e instalações operacionais de:
 

a) abastecimento de água potável: constituído pelas atividades, infraestruturas e instalações necessárias ao abastecimento público de água potável, desde a captação até as ligações prediais e respectivos instrumentos de medição;

b) esgotamento sanitário: constituído pelas atividades, infraestruturas e instalações operacionais de coleta, transporte, tratamento e disposição final adequados dos esgotos sanitários, desde as ligações prediais até o seu lançamento final no meio ambiente;

c) limpeza urbana e manejo de resíduos sólidos: conjunto de atividades, infraestruturas e instalações operacionais de coleta, transporte, transbordo, tratamento e destino final do lixo doméstico e do lixo originário da varrição e limpeza de logradouros e vias públicas;

d) drenagem e manejo das águas pluviais urbanas: conjunto de atividades, infraestruturas e instalações operacionais de drenagem urbana de águas pluviais, de transporte, detenção ou retenção para o amortecimento de vazões de cheias, tratamento e disposição final das águas pluviais drenadas nas áreas urbanas.”



Portanto, saneamento básico inclui as principais medidas que garantem a saúde humana e ambiental de uma comunidade, como o abastecimento de água limpa, a limpeza das ruas, a coleta de lixo, o controle de pragas como ratos e insetos, e o esgotamento sanitário, entre outros serviços de infra-estrutura e instalações. Não basta um encanamento que retire o esgoto das casas, se ele for despejado num valão poucos metros adiante. Isso não é saneamento! Assim como de nada adianta um sistema perfeito que encaminhe o esgoto doméstico para a rede pública de esgoto, se no entorno das casas houver lixo amontoado, ou se não houver abastecimento de água potável regularmente, etc. Ter saneamento básico significa ter condições básicas de higiene e saúde pública que protejam as pessoas de contaminações e preservem o meio ambiente.

O saneamento básico um direito essencial de todos os cidadãos. Mas também é uma questão de educação que exige a consciência e a responsabilidade de todos. Afinal, não adianta o abastecimento de água regular, se as pessoas não cultivarem o hábito de lavarem as mãos, pois isso é fundamental para evitar doenças. Ou, um serviço de limpeza urbana eficiente, numa comunidade onde os habitantes costumam jogar lixo nas ruas. Por mais que os trabalhadores caprichem na vassoura, sem a colaboração de todos o lixo continuará entupindo bueiros, provocando enchentese causando infecções.

Para constatar se sua comunidade possui ou não saneamento básico, você deve tentar responder a estas perguntas:
 

- O conjunto de residências recebe água potável tratada através da rede pública de abastecimento? De onde vem a água que se consome para beber, cozinhar e para a higiene pessoal?

- O esgoto doméstico é despejado na rede geral de esgoto? Se não, onde?E depois, para onde ele vai, onde será despejado? Ele passa por algum tratamento?

- O lixo (resíduos sólidos) é devidamente coletado das residências por um serviço de limpeza (diretamente ou através de caçambas?) Se não, para onde ele vai?

- As ruas e áreas comuns da comunidade estão sendo limpas?

- Existem pragas que transmitem doenças circulando pelas casas (ratos, mosquitos da dengue, etc)?

- Quando chove, existe um sistema de drenagem que previna enchentes?



Conhecer a situação do saneamento básico na sua comunidade é o primeiro passo para poder cobrar soluções das autoridades e fazer a sua parte como cidadão!
 


 

“O problema não é tão grave”

Entrevista com Wagner Victer, engenheiro civil e presidente da Cedae


Foto: DivulgaçãoAgostinho Vieira: Como está o saneamento nas favelas atualmente?

Wagner Victer: A situação não é tão ruim quanto parece. Dados do IBGE mostram que em algumas favelas, a cobertura da rede de esgoto é de quase 100%. Hoje em dia são poucos os lugares onde se encontram línguas negras e problemas de saúde provocados por elas.

AV: Mas o IBGE se baseia na resposta dos moradores e não distingue se o esgoto está sendo tratado ou indo para rios e mares.

WV: De fato, o sistema de esgoto usado nas favelas é o sistema unitário, onde o esgoto é canalizado juntamente com as águas pluviais. Mas este sistema é usado em outras partes do mundo. Seria impossível trocar tudo para usar o sistema separador absoluto, seria uma obra muito grande.

AV: A coleta de esgoto é eficiente nas comunidades?

WV: O problema da coleta está quase resolvido. Quase não tem língua negra e doenças nas comunidades. O maior problema é o tratamento de esgoto. Por isso temos o projeto “Sena Limpa” e as obras do PAC. Existem muitas obras em curso. Os dutos da Niemeyer estão sendo trocados, uma nova elevatória será feita em São Conrado e o esgoto do Chapéu Mangueira e da Babilônia irão para o emissário submarino de Ipanema. O esgoto do Alemão irá para a Estação de Tratamento de Esgotos (ETE) da Alegria, onde está sendo feita uma obra para aumentar o volume de esgoto tratado. Hoje são cinco mil litros por segundo de tratamento primário e 2,5 mil de tratamento secundário. Vai passar para 7,5 mil litros por segundo de tratamento primário e secundário.

AV: Como são divididas as responsabilidades, entre as instituições, no que diz respeito ao esgotamento das favelas?

WV: Até 2007, as favelas eram responsabilidade da Cedae. Em janeiro de 2007, o ex-prefeito César Maia pediu ao Sérgio Cabral para ficar com o saneamento das favelas e da Zona Oeste. Ele levou, mas não fez quase nada. Em 2012, o Eduardo Paes pediu para o Cabral levar as favelas de volta. Hoje, a Cedae cuida das favelas que têm UPP. As outras ficam com a Rio Águas e a Zona Oeste com a empresa privada Foz Águas 5.

“Não há saneamento nas favelas”

Entrevista com Raúl Pinho: engenheiro civil, ex-presidente do Instituto Trata Brasil



Foto: DivulgaçãoViva Favela: Afinal, como está, de um modo geral, o esgotamento nas favelas do Rio de Janeiro? Há recolhimento? E o tratamento?

Raul Pinho: Não existe esgotamento nas favelas. O que sai das casas não está ligado à rede de esgotos da cidade, e então vai para os rios, para o mar, etc. No Brasil, tudo é feito ao contrário, a Cedae inaugura as estações de tratamento, mas mal tem uma rede de esgotos.

VF: Como está, nas periferias do Rio de Janeiro, o fornecimento de água?

RP: A rede está bem instalada, o problema está na falta de manutenção e de intermitência, ou seja, no fornecimento contínuo de água. Existem localidades, como Bangu, que só recebem água uma vez por semana. Além disso, se você for olhar a manutenção da rede, ela está muito atrasada, como no Centro por exemplo. Outro problema é que todo o Rio de Janeiro é abastecido pela Estação de Tratamento de Água do Guandú. Se quebrar ali, não tem mais água na cidade.

VF: E em relação à qualidade da água?

RP: Ela é boa. Não critico a qualidade da água da Cedae.

VF: De 0 a 10, qual é a dificuldade em instalar rede de abastecimento de água e rede coletora de esgoto nas favelas?

RP: Eu diria 8. Com dinheiro, tudo é possível, mas acredito que seria muito trabalhoso. Esta rede, no entanto, não é ideal, pois nunca será possível devido à ocupação desordenada. O que se pode fazer é recolher este esgoto das redes de drenagem, ainda na favela, e fazer uma ligação exclusiva para ela até uma estação de tratamento

VF: A segmentação do serviço entre Rio Águas, Cedae e Foz Águas no Rio de Janeiro é prejudicial?

RP: A segmentação em si não é prejudicial. O que não pode acontecer é que uma empresa não tenha contrato com o governo, como acontece com a Cedae. Assim, ela faz o que quer, não tem metas. Ela se deu a tarefa de fornecer água para os bairros, mas esgotamento, só em alguns. Uma empresa que fornece água também tem que recolher esgoto.

VF: É possível fazer um ranking, em relação ao saneamento, do desenvolvimento das três “variáveis” do saneamento no Brasil: água, esgoto e lixo?

RP: Com certeza o esgoto é o menos desenvolvido e a água, a mais desenvolvida. O lixo fica em segundo lugar.

Saneamento é básico, mas não existe

 Foto: Rodrigues Moura

Nas favelas da região metropolitana do Rio de Janeiro, o saneamento continua longe do básico. Dos serviços definidos pela Lei do Saneamento Básico, o esgotamento é o que tem a pior situação. A coleta engatinha, o esgoto a céu aberto ainda é uma realidade e o tratamento está perto de zero. Para Carlos Minc, secretário estadual de Ambiente até janeiro de 2014, o saneamento nas favelas é “um desastre ecológico de grandes proporções”. Aspásia Camargo, presidente da Comissão de Saneamento Ambiental da Assembleia Legislativa (Alerj), completa: “absolutamente todas as favelas têm saneamento de Idade Média”.

De fato, o que os correspondentes e a redação do Viva Favela constataram em comunidades como Urucânia, Fallet, Rocinha, Manguinhos, Cantagalo, Rio das Pedras e Boa Vista (Niterói), é que a falta de saneamento continua trazendo transtorno e doenças à população. Raul Pinho, engenheiro e conselheiro do Instituto Trata Brasil, explica que o esgotamento em favelas não existe porque não há tratamento. “O que sai das casas não está ligado à rede de esgoto da cidade, e então vai para os rios ou para o mar”, diz. Ouvimos líderes comunitários de mais de dez favelas e, em algumas delas, descobrimos que até existe alguma ligação com a rede pública. No entanto, como o esgoto é recolhido juntamente com a água da chuva, ele não é tratado.

Wagner Victer, presidente da Cedae, admite que o tratamento é o grande problema no esgotamento das favelas. Mas para ele a situação não é tão ruim quanto pode parecer: poucos lugares ainda teriam línguas negras e doenças relacionadas à falta de saneamento. Victer acredita que o projeto “Sena Limpa”, as obras do PAC (Programa de Aceleração do Crescimento) e a ampliação das estações de tratamento de esgoto indicariam um caminho de melhora.

Quando o tema é coleta de lixo e fornecimento de água, a situação parece ser um pouco melhor. Mas só um pouco, pois a qualidade do serviço ainda deixar muito a desejar. Uma velha conhecida das favelas, a falta d’água, continua afetando moradores da Rocinha, Picapau, Rio das Pedras, Boa Vista, Casa Branca, entre muitos outros locais. Na Baixada, mesmo entre as casas ligadas à rede pública, o problema da falta d’água também é crônico. "A questão da água na Baixada é um caso de polícia. Como é possível que falte água aqui no Guandu, se é daqui que ela sai? Isso é uma manobra para abastecer o Rio de Janeiro", denuncia Sidney Neves, presidente da Associação de Moradores de Vila Operária, em Duque de Caxias.

Minc lembra que o serviço de recolhimento de lixo também é falho. “Como não existe coleta adequada, as poucas tubulações que existem entopem e deixam as comunidades sujas de lixo e esgoto”, aponta. Na apuração da Revista #18, a equipe do Viva Favela percebeu que as instituições responsáveis pela coleta do lixo costumam chegar às comunidades, mas a falta de pessoal, de lixeiras e caçambas, além da pouca colaboração da população, continuam deixando o serviço longe do ideal.

Os números do saneamento

Quem olha os dados do Censo 2010, do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), pode concluir que o saneamento em favelas ou “aglomerados subnormais”, como são chamados pelo Instituto, não é um problema tão grande. O IBGE caracteriza como aglomerados subnormais os terrenos que reúnem “um mínimo de 51 casas com ocupação ilegal da terra, além de apresentar urbanização e oferta de serviços públicos precários”. O Censo 2010 indica que das 616.814 residências que ocupariam tais áreas no estado, 78% estariam ligadas à rede geral de esgoto ou águas pluviais, 91% à rede geral de distribuição de água e 96% aos serviços de limpeza.

Raul Pinho e Carlos Minc, no entanto, alertam: os dados do Censo nada têm a ver com a realidade.  “Quando o recenseador pergunta para o morador se a casa dele tem esgoto, o morador pensa só que o esgoto está saindo da sua casa e considera que tem rede. Mas ele não se importa para onde está indo esse material ao sair da sua casa. Isso faz parte da cultura de afastamento da população”, explica Pinho. Mesmo trazendo dados subdimensionados, o Censo 2010 contabiliza que, no estado do Rio, 63.188 famílias moradoras de aglomerados subnormais estariam despejando seu esgoto em locais inadequados, como fossas rudimentares, valas, rios, lagos ou mar.

Outra fonte é o Sistema Nacional de Informações sobre o Saneamento (SNIS), do Ministério das Cidades. Ele mostrou, em 2010, que entre as 100 maiores cidades do Brasil aparecem alguns municípios fluminenses que estão em situação crítica. Considerando serviços de água e esgoto, Belford Roxo ficou em 77ª lugar, São Gonçalo em 75º, São João de Meriti em 73º, Nova Iguaçu em 71º e Duque de Caxias em 69º. A situação é um pouco melhor no Rio de Janeiro (37º) e em Volta Redonda (29º), e melhor ainda em Niterói (9º).

Pinho, no entanto, faz também ressalvas sobre os dados do SNIS. “A pesquisa é feita a partir dos dados das concessionárias e estes dados podem não ser confiáveis”, diz. Além disso, por se basear nos dados das concessionárias, o universo da população abordado é aquele atendido pelas mesmas – a população sem o serviço fica de fora dos dados.

Ninguém quer o abacaxi

O problema do saneamento nas favelas tem, certamente, raízes em questões institucionais. A engenheira Renata de Faria Rocha, mestre em Saúde Ambiental pela Universidade de São Paulo (USP), afirma que o país ficou quase 30 anos sem investimento em redes de esgoto. “Na década de 70, o país não tinha água para beber, e este foi o foco da Política Nacional de Saneamento Básico. Foi um problema não ter investido também em esgoto, porque com o crescimento das cidades, a poluição foi muito rápida. Somente no final da década de 90 é que algo começou a ser feito”, relata.

No Rio, a última década se caracterizou por um jogo de empurra-empurra entre Prefeitura e Governo Estadual no que diz respeito ao saneamento. Até 2007, este tipo de serviço nas favelas era responsabilidade da Cedae. Naquele ano, o encargo passou para as mãos da Prefeitura, sob o comando de César Maia, juntamente com o saneamento da Zona Oeste. Em 2012, Eduardo Paes colocou novamente a questão na mesa e, atualmente, as redes de favelas com UPP são operadas pela Cedae, as da Área de Planejamento 5 (região que abrange Bangu, Campo Grande, Santa Cruz, Realengo e Guaratiba) pela concessionária Foz Águas 5 (que tem, desde 2012, um contrato de 30 anos) e as das  favelas sem UPP pela Prefeitura, através da Fundação Rio Águas. A instalação de novas redes é, segundo lei federal, responsabilidade do município – o que no Rio de Janeiro é feito através do projeto “Morar Carioca”.

Esta configuração gera inquietação entre os especialistas. Uma máxima entre eles é que um prestador de serviço que cuida da água deve também cuidar do esgoto. Não é o caso da Cedae. Ela é atualmente responsável pelo abastecimento de água de 64 dos 92 municípios fluminenses e pela rede de esgoto em dois. A cobrança por serviços não prestados, a ausência de contrato com as prefeituras e as revisões tarifárias ilegais são algumas acusações frequentemente direcionadas à empresa pública.

Em meio à confusão, parece não haver regras para o pagamento do serviço. Algumas comunidades pagam por água e esgoto, mas não têm coleta deste último, outras não pagam nada, mas recebem algum tipo de serviço. Em Casa Branca, por exemplo, a população não paga pelo serviço. Para Marcus Vinicius Belizário, presidente da associação de moradores, seria melhor se pagasse. “Assim, poderíamos reivindicar um melhor serviço, que hoje envolve falta de água e falta de manutenção nas tubulações de esgoto”, diz.

Ocupação desordenada dificulta implantação de redes

O elevado adensamento, a pavimentação irregular e as estreitas vielas são obstáculos concretos à realização dos serviços de saneamento.  O sistema unitário, onde as águas da chuva e o esgoto são recolhidos em um mesmo canal, acaba sendo a solução encontrada para implantar o saneamento nas comunidades. O sistema separador absoluto, em que os dois materiais são recolhidos separadamente, seria impossível de ser implantado nas favelas, na opinião de Wagner Victer e de Raul Pinho.

Renata de Faria Rocha, especialista na implantação de redes de esgoto e água em favelas, admite que o sistema separador absoluto exige muitos custos sociais e financeiros. Por outro lado, trabalhar com a água que chega junto do esgoto no sistema unitário também pode ser muito custoso. A solução: avaliar caso a caso. “A favela não deve ser tratada como um bairro, ela é peculiar. E cada favela tem sua peculiaridade. Por isso, não existe uma só solução. É preciso uma adaptação”, aponta Renata, lembrando a importância do diálogo com a comunidade e da queda dos preconceitos por parte daqueles que planejam a obra.

Favelas refletem saneamento nacional falido

O SNIS 2011 mostrou que 48,1% da população brasileira tem coleta de esgoto e apenas 37,5% recebem algum tipo de tratamento – o que não quer dizer que seja o ideal. Em visita ao Brasil, em dezembro, a relatora especial das Nações Unidas para o Direito à Água e Saneamento, Catarina de Albuquerque, lembrou que o Brasil está entre os 10 países onde mais faltam banheiros. De acordo com a ONU, 7,2 milhões de pessoas estariam nesta condição.

Catarina apontou também que a falta de saneamento tem consequências diretas na saúde da população: a cada US$1 investido em esgoto, deixa-se de gastar US$4 em saúde. No Brasil, foram 400 mil pessoas internadas com diarréia em 2011, sendo que as crianças com até cinco anos de idade são as maiores vítimas.

Para Raul Pinho, o Brasil caminha, mas a passos mais lentos que o necessário. Perguntado se a máxima “obra debaixo de terra não dá voto” é verdadeira, ele concorda. “Eu sempre digo também que os políticos não devem fazer saneamento como política, mas sim uma política de saneamento”, diz. Se a universalização é possível? “Só se for daqui a cem anos”, responde.

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