Dependentes químicos lutam “só por hoje”
Dados da Coordenação de Saúde Mental do Ministério da Saúde revelam que 6% da população brasileira apresenta transtornos psiquiátricos graves decorrentes do uso de álcool e outras drogas e 10% da população mundial sofre com transtornos relacionados a esse uso.
Apesar das iniciativas profissionais e das políticas de saúde voltadas para esse segmento da população, ainda existe muito preconceito envolvendo a presença e a organização de formas de apoio na sociedade. Ninguém está preparado para lidar com um dependente químico na família, seja de álcool, medicamentos ou drogas ilícitas. Por ser uma doença muito estigmatizada e que exige tratamento multidisciplinar, a tendência, principalmente por causa da falta de informação, é que a família não lute pelo doente. Ou, por vergonha, esconda a questão ao invés de pedir ajuda.
Como uma reação a essa realidade, surgem cada vez mais grupos de ajuda mútua em comunidades carentes e na periferia. De acordo com José Pereira, diretor do Escritório de Serviços Locais – Alcoólicos Anônimos (ESL AA), somente no Conjunto de Favelas da Maré, Zona Norte do Rio, existem 12 grupos e na região que abrange Santíssimo, na Zona Oeste e Itaguaí, são 28. Pereira acha que a falta de opção de lazer nas periferias acaba levando o indivíduo ao álcool, tornando-se o “bebedor problema”.
Jornada de dor e superação
Dona Marlene* e seu José* (nomes fictícios) ficaram chocados ao saber que o filho Leonardo*, 54 anos, era usuário de drogas. O problema pegou os pais de surpresa já que o filho trabalhava, era casado há 30 anos e ajudava os pais. A descoberta do vício foi uma jornada de dor e culpa, mas também uma história de superação. Após a internação, com a perda de bens materiais, casamento e emprego, Leonardo iniciou uma das fases mais difíceis: o resgate da autoestima e da confiança dos outros. Considerado “limpo” há dois anos e sete meses, ele frequenta o grupo Qualidade de Vida da Santa Casa de Misericórdia e as irmandades de Alcoólicos Anônimos (AA) e Narcóticos Anônimos (NA).
Hoje ele diz, orgulhoso, que é um dependente em recuperação: “O tratamento é uma transformação, uma revisão de valores de vida. Conquistei a confiança de meus pais. Trabalho, estudo, cuido da minha alimentação, surfo. Essa doença não tem cura. É só por hoje. Temos que ficar muito atentos”, alerta Leonardo.
População carente é mais vulnerável
Para o médico Oscar Cox, membro da Associação Brasileira de Alcoolismo e Drogas e especialista em tratamento de dependentes químicos, a doença é democrática e atinge a todas as classes sociais, mas os moradores de comunidades carentes estão mais vulneráveis e mais desinformados: “Num país em que a baixa renda produz a necessidade pela sobrevivência, os sentimentos são pouco percebidos. Medo, agressão e defesa de território passam a ser a essência da vida”.
De acordo com o especialista, o maior índice de recuperação está nos centros de internação em que os doentes são encaminhados para os grupos de ajuda mútua. Como a dependência é uma doença que não tem cura, mas sim controle, como a diabetes e a hipertensão, na visão do especialista, os grupos de autoajuda são os mais eficazes. Os instrumentos de tratamento são a entrevista motivacional, a terapia cognitiva comportamental, a terapia racional emotiva e os programas de 24 horas de AA.
O médico costuma encaminhar os familiares para o Al-Anon ou para o Nar-Anon, associações que recebem a família de dependentes químicos, que compartilham suas histórias e dores. “Como as famílias são disfuncionais, a mãe diz uma coisa e o pai outra, o ambiente se transforma no caos”, explica Oscar Cox. O programa oferece os passos e conceitos para ajudar a conviver com essa realidade e aprender a lidar com as situações.
Renata* diz que conhecer o Al-Anon foi libertador. Filha de pai alcoólatra, ali ela percebeu que não estava sozinha: “Durante anos sofri muito, escondendo o problema do meu pai a sete chaves. Pela primeira vez pude dividir minha experiência com pessoas que tinham a mesma questão. Hoje entendo que não tenho controle sobre o outro”.
O enfermeiro Alexander Farias, especializado em saúde mental e funcionário do Instituto de Psiquiatria da UFRJ, tem uma vasta experiência com vícios. O enfermeiro, que já trabalhou diretamente com programa de família em saúde mental no Complexo do Alemão, acredita que as pessoas de baixa renda, muitas vezes sem referências familiares, lazer e sem perspectiva de futuro, têm um risco social muito maior. Hoje o profissional faz palestras para adolescentes em escolas e orienta o familiar que descobre um usuário em seu núcleo a procurar o CAPS AD – Centro de Atenção Psicossocial Álcool e Drogas da sua região. “É um desafio convencer um viciado ou alcoólatra de que ele precisa de ajuda. Mas, quando se consegue reinserção dessas pessoas, o que se faz com os grupos de ajuda mútua, é uma vitória”, garante.
“Viver o aqui e o agora”
A psicóloga Viviane Fukugawa, que atende num programa de recuperação na Santa Casa de Misericórdia, um serviço filantrópico voluntário, informa que o índice de evasão é grande, “mas mostramos que quem insiste consegue se recuperar”.
O programa é baseado em quatro fases: a abordagem motivacional, onde o paciente é levado a se conscientizar do problema; a terapia cognitiva comportamental, que estimula o doente a lidar com a doença e a buscar estratégias para evitar recaídas; a participação no grupo Qualidade de Vida, onde são abordadas questões como mudança de estilo de vida e de valores; e, na quarta fase, a novidade no ambulatório, que é a mind fullness.
Segundo a psicóloga, a técnica é baseada em princípios do budismo e consiste na atenção plena. O objetivo é ajudar o dependente a lidar melhor com o desconforto emocional da falta da droga. “Essa atenção é desenvolvida através da respiração e da meditação, levando o paciente a identificar o que está sentindo e a não julgar o sentimento; a aprender a observar e separar pensamento de emoção; a viver o aqui e o agora”, explica Viviane.
Felipe Honório Macedo, 35 anos, é um dos participantes deste programa. Há três anos limpo, ele experimentou algumas drogas, mas o crack foi sua droga de escolha e fundo de poço. “Na primeira vez que fumei me viciei. Cheguei a pernoitar pelas ruas e viver trancado por dias. Não tinha mais vida social”, lembra. Felipe foi internado por 45 dias e saiu de lá para freqüentar grupos de recuperação baseados na programação de 24 horas. Foi sua salvação: “Tive a sorte de me tratar na Santa Casa, compartilhar com meus iguais e a contar com o apoio de minha família. É possível superar, mas sozinho é impossível”, relata.
Atualmente, além das clínicas de recuperação, existem muitos grupos de igrejas católicas e evangélicas que atuam nesse segmento com muito sucesso. O pastor Alessandro de Andrade é um ex-usuário, que abriga mais de 15 jovens em um sítio em Sepetiba, Zona Oeste do Rio. A maior parte deles é dependente de crack. Segundo Alessandro, que distribuiu panfletos no trem da Central do Brasil para arrecadar fundos para o abrigo, esse trabalho é uma retribuição ao que ele recebeu quando estava em tratamento. Há sete anos limpo, ele chegou a dormir pelas ruas, não teve apoio da família quando mais precisou e sofreu com recaídas. Por isso, tomou a decisão de ajudar os que sofrem com as drogas.