Desmistificando o que se entende por favela
O Brasil passou por um avanço significativo nos hábitos de consumo da população nos últimos 12 anos. Observando este fenômeno de crescimento, Renato Meirelles e Celso Athayde publicaram a maior pesquisa já realizada em favelas do Brasil, que resultou no livro Um país chamado favela, lançado este ano pelo Instituto Data Popular. Um dos objetivos do livro era desmistificar o que hoje se entende por favela e oferecer um panorama mais amplo sobre as periferias do país.
O Brasil tem 11,7 milhões de habitantes em favelas, o que representa 6% da população total. Se as favelas formassem um estado, seriam o quinto mais populoso de toda federação. São R$63 bilhões sendo movimentados na economia anualmente, somente por esta parcela da população. Mas há outros aspectos que também chamam a atenção. Athayde ressalta que a mobilidade, a transição entre classes, é um dado que deve ser levado em consideração.
A aposentada Ana Maria Costa é um dos exemplos desta mobilidade. Moradora de Santíssimo, na Zona Oeste, ela reconhece que sua vida deu um salto nos últimos 10 anos. Antes moradora da Vila Kennedy em uma casa de dois quartos, que dividia com os cinco filhos, Ana conseguiu se mudar para uma casa mais espaçosa com quintal, além de ter adquirido novos hábitos de consumo, como viagens em família e produtos eletrônicos.
“Agora eu me planejo para viajar com meus netos nas férias, coisa que eu nunca consegui fazer com meus filhos”, observa. A aposentada também percebe que o acesso à informação através da internet contribui para a mudança do status social. “Eu não uso muito, mas as crianças têm acesso a tudo através da Internet, eles são muito informados, compartilham as coisas que estão acontecendo no mundo comigo”, conta ela, que assina um pacote de banda larga com TV a cabo.
Capacidade de empreender
Mas não é só o consumo, como resultado final, o que conta. Segundo Athayde, a mobilidade social também vem da maior capacidade do jovem de empreender, que vai além da lógica natural do filho querer chegar mais longe para ajudar os pais. “O novo favelado, jovem sobretudo, tem uma habilidade para empreender que vai além da favela. Ele passou a ter muitas informações e isso traz uma nova dinâmica. A nova geração das favelas é aquela que vive conectada, além de estar propondo, formulando e empreendendo”, garante.
Em contrapartida ao milagre econômico, os temas sobre sustentabilidade têm estado cada vez mais em voga. Parece ser uma contradição, já que as camadas mais populares são cada vez mais incentivadas a continuar consumindo. Athayde, entretanto, traça outra análise: “Essas pessoas passaram a ter valor pela lógica do consumo, uma vez que o capitalismo as reconhece pelo poder de compra. Mas a sustentabilidade só será efetivada se as empresas entenderem que essas pessoas não devem somente consumir, mas fazer gestão daquilo que consomem”, analisa.
A jornalista Silvana Bahia lembra, no entanto, que o aumento do poder de consumo não traz necessariamente a garantia de direitos mais básicos. “O consumo material também é importante, mas isso nem sempre é garantia de direitos essenciais, como saúde e educação. Neste campo ainda falta um longo caminho a traçar”, observa. Ela fala também que introduzir o assunto sustentabilidade em uma conjuntura que não está totalmente consolidada – como a “Classe C” – também é delicado: “Não acho que as pautas de consumo e sustentabilidade andem juntas. Acho que ainda precisamos pensar em um jeito de avançar nesta questão”.
Fotos: Arquivo pessoal
Silvana econtrou o amigo Bruno Duarte em Paris e, depois, seguiu sozinha para Berlim
Ana endossa o coro: “As oportunidades estão chegando agora para a gente. Antes não tinha nem luz, nem água direito em casa, tinha que ficar enchendo os baldes toda semana. Aí cada hora eles vêm com uma coisa, de que não pode gastar, que os recursos estão acabando. Só que para a gente nunca teve, não fui eu que gastei isso”, brinca.
Mas há um ponto sobre o qual Silvana é mais assertiva: os últimos dez anos foram decisivos para uma virada na vida das classes mais baixas. “Uma coisa que me marcou muito foi o acesso à Universidade. Sem dúvida foi um avanço importante na minha vida”, diz ela que passou as últimas férias na Europa.
Diferentes favelas, diferentes vocações
Cabe ressaltar também que é um erro acreditar que as favelas são homogêneas. Cada uma tem seus códigos e características e mesmo as que estão na mesma cidade divergem entre si. As diferenças aumentam ainda mais quando se fala em regiões. “As favelas são divergentes dentro delas mesmas. As diferenças, sejam econômicas ou políticas, podem ser absurdamente grandes. Quando levamos isso para o cenário nacional essas distâncias se soltam ainda mais, seja na música, nos hábitos ou nas necessidades de consumo ou vocações para empreender”, garante Athayde.
O livro apresenta dados que comprovam as diferenças notadas, principalmente, no eixo Norte-Sul. Segundo o texto, a renda média do trabalho principal numa família gaúcha era de R$ 1.158, enquanto no Rio era de R$ 1.090. Na outra ponta, no Nordeste, o mantenedor principal embolsava em média R$ 821 no Ceará e R$ 762 na Bahia.
O crescimento da renda fez com que a maior parte dos moradores da favela entrasse no estrato chamado “Classe C”. Isso, segundo o livro, é extraordinário e inspira uma reflexão sobre o processo recente de inclusão social massiva no país. Mas Athayde lembra que consumo e consumismo não são a mesma coisa. “O poder de consumo em um país capitalista dá sua importância social, mas é bom não confundir consumo com consumismo. Consumo é a possibilidade de você ter acesso a bens que viabilizam facilidade e felicidade através de conforto para sua vida. Consumismo é a ideia de ter acesso a tudo por uma indução global, independente se é ou não essencial”, conclui.