As mil faces de Ana
os lençóis nos varais
A meninada inocente quanta
luz!
Papai do céu! Não sentia e
nem percebia as opressões, as
dores do mundo, zoando até os
sertões.
Imagine só! Tudo era faz de
conta!
(Trecho do poema “Bolinhas de sabão”)
Seja na poesia, na pintura, no teatro ou em projetos sociais: Ana Maria de Souza, de 84 anos, precisa se expressar. Moradora da Vila do João, na Maré, a artista conta que, desde pequena, escreve e desenha, por vontade própria. Em 2002, resolveu aprimorar suas vocações: se inscreveu em cursos de pintura e de teatro, e intensificou sua escrita, resultando no lançamento recente do livro de poemas “Faces de Ana”.
Mineira de Carangola, veio para o Rio de Janeiro trabalhar como doméstica e ajudar uma tia, que estava com o marido doente. Por décadas, trabalhou e morou em casa de família. Já ali, a inspiração a levava a criar. “Às vezes eu estava limpando e tinha alguma ideia. Parava para anotar um poema, pois às vezes a ideia foge”, conta. Aposentada por invalidez, se mudou para a Maré e iniciou o curso de pintura com a professora Lina Mello, e de teatro com o professor Paulo Mag, já falecido.
Ana Maria sente que as portas estão se abrindo. Ela pensa em fazer exposições e outros trabalhos no futuro. Para ela, a inspiração está sempre ao redor. “Me inspiro no amor, na esperança, nos desenganos, no perdão”, afirma. Entre seus poetas favoritos, estão Augusto dos Anjos, Cruz e Souza, Castro Alves e Fernando Pessoa. Entre os pintores, ela não titubeia: “Van Gogh, com certeza”, diz.
Na pintura, começou com os rostos, se baseando em imagens já existentes, que servem como modelo – no momento, está experimentando pintar em chapas de Raio X. Algumas de suas obras estão expostas nos painéis acústicos das linhas Amarela e Vermelha e já foram exibidas no Museu da Maré e em eventos da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Quando está sem dinheiro para comprar pincéis, Ana Maria não para de pintar: o faz com as mãos.
A poesia também tem um lugar importante na vida da artista. “Ai de mim se não fosse a poesia”, afirma. Na agenda do ano, está o lançamento de “Faces de Ana”, realizado em maio na Associação de Moradores da Vila do João e no Jornal SBT Rio, e a participação na próxima Feira Literária das Periferias, a Flupp. Com o dinheiro da venda do livro, Ana pretende ajudar a Sociedade União Internacional Protetora dos Animais (Suipa), no Rio de Janeiro.
Ana Maria também realiza cerâmicas e atua no teatro, ocasionalmente. Seu último papel foi na peça “Chiquinha Gonzaga”, dirigida por Paulo Mag. Ela era a ama de Chiquinha, um papel que definiu como “marcante”. “Um personagem humilde conquista as pessoas”, afirma. A artista diz continuar aberta para outras experiências no teatro.
Perdidos de esperança
A alma rica, de anuência
A buscar estou o sol
A festa, o acontecimento
A buscar, estou, uma aresta
(Trecho do poema “África dos altares constante na luta pela paz”)
Para a moradora da Maré, a arte tem o poder de transformar. “Ela mexe com todos os sentidos das pessoas, levando-as a serem melhor”, analisa. Talvez por isso Ana Maria dedique parte do seu tempo ao voluntariado em projetos sociais: ela participa do grupo "Embaixadores da alegria" no Instituto Benjamin Constant, e do projeto Maré Latina de Aprendizado.
Apesar da importância que dá à arte, Ana Maria lamenta que esta valorização não aconteça entre seus vizinhos. “Eu gosto muito de morar na Vila do João, mas não gosto da falta de interesse pela arte”, comenta. Para o futuro, a artista projeta um maior desenvolvimento da sua carreira, e deseja despertar o interesse de mais pessoas pelo seu trabalho. Por que para ela, “arte é tudo de bom”.