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Retificação

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No hospital, bem próximo das sete da manhã, a enfermeira chama em tom forte, repetitivamente: “Reinaldo Carvalho. Reinaldo Carvalho?”. As várias pessoas sentadas no salão principal não respondem e ela segue com sua prancheta, tentando escrever e caminhar ao mesmo tempo. A correria do dia faz isso: duas, três, quatro coisas feitas ao mesmo tempo. Mais alguns segundos e uma mulher se levanta atrás do nome que não é mais seu. “Nome dado às coisas, não tem problema de falar certo ou errado. Mas o nome de pessoas? Algumas se ressentem, e eu sou uma destas”. A reflexão veio quase que instantânea. Como estas situações a irritavam!

O nome estava escrito certo no documento que entregou logo no primeiro atendimento. O documento era uma decisão judicial de retificação de nome, para usar enquanto a Certidão de Nascimento, RG, CPF, Carteira de Habilitação, Carteira de Trabalho, conta de luz, TV a cabo, condomínio e, claro, o cadastro do Sistema Único de Saúde (SUS) não estivessem atualizados. “Se era para ler a minha ficha antiga, porque tive que ficar respondendo a um cadastro? Falta de consideração com o cidadão. Carmen é o nome verdadeiro. Eu luto e busco respeito para a minha identidade”, pensa para si enquanto tenta alcançar a enfermeira.

Durante a caminhada os pensamentos de fúria se amenizam. Carmen dirige-se ao balcão e diz quase sussurrando: “Sou o paciente que chamaram”. A afirmação é um chacoalhão em ambas. A funcionária tem um segundo de ausência, olha para quase todos os lodos, menos nos olhos da transexual Carmen. Colegas haviam mencionado situações semelhantes. Colegas da paciente e da enfermeira.

A enfermeira cora as bochechas enquanto dá um visto na prancheta. O episódio é constrangedor. Por falta de atenção de alguém, a ficha veio incompleta e ela terá que refazer todas as perguntas. Percebe que a paciente está impaciente. Dali a pouco, o médico a chamaria e os dados precisavam estar corretos. O constrangimento não veio porque chamou um homem e veio uma mulher, e sim, por ter que refazer o trabalho. A curiosidade veio, claro! Mas o tempo é escasso, há outras pessoas a atender já que ela orienta os pacientes de seis especialidades do setor.

“Ah sim!”, exclama a enfermeira, “teremos de preencher os dados antes de encaminhá-la ao médico clínico geral. Não há muita informação, apenas Reinaldo Carvalho e idade”. À sua frente, Carmen tem que assumir, contra a sua vontade, a identidade ganha de seus pais há 35 anos. Aquele nome, que lembrava apenas o esquecido, ela não reconhecia, não incorporava mais. Dor por um lado, força por outro. Se aquele nome não lhe dizia mais nada, o processo de alteração civil fazia todo sentido! “Não me agrada em nada essa situação”, Carmen pensou. Estava lá toda a informação que evitaria o constrangimento. Estava lá, desde o atendimento anterior.

Para Carmen aquele nome não representava, nem significava nada. Foi escolhido pelos pais quando nasceu e ponto. Ela se sentia feminina, tinha escolhido um novo nome. Não era Reinaldo, e sim Carmen. Cedo na vida as transexuais sentem que se tornou insuportável carregar um nome que não as reflete. Independentemente de qualquer situação que viesse a passar! Com Carmen aconteceu desde os 12 anos de idade, quando o “eu” masculino deixou de existir. A cópia da declaração com a alteração do nome estava no maço de papéis na mão da enfermeira, sim, mas não de maneira clara, a informação estava no meio do papel e, assim, sem a atenção dos olhos, poderia mesmo passar despercebida. “Fazer o quê?”.

Desejo

Um dia, ela ouviu de alguém: “Os cidadãos têm esse direito de requerer a retificação civil, tudo por meio de processo e decisão judicial. Com cirurgia de mudança de sexo o processo é mais rápido”. Ela agarrou a oportunidade de aliviar as angústias que a forçavam a não assumir a identidade que queria. Requereu, esperou e recebeu a declaração de alteração. Por isso os constrangimentos eram mais profundos e as cicatrizes, amargas. “Uma questão de respeito! Dá para ver que a enfermeira não tem culpa e muito menos teve a intenção de me ferir. Mas promover hoje esse pensamento, às sete da manhã?! Foi como cutucar uma lembrança esquecida”, explica Carmen para seu consciente. Por que isso a fere tanto? Ela sabe.

“Se não mostrarmos o quanto nos afeta, vai ser sempre assim. Errou, refaz. Eu lembro das violações nos meus direitos, da busca da minha dignidade e de assumir quem realmente sou, na família, com amigos, nos espaços que frequento. Foi um esforço constante. E agora tenho o reconhecimento judicial da minha identidade social, nome e gênero”.

Enquanto os pensamentos percorriam histórias, experiências e a constante afirmação de Carmen, a enfermeira desviava os olhos, com a cabeça recheada de balões de insatisfação. Mesmo sendo da área da saúde e curiosa para descobrir “as pessoas pelas pessoas”, não se permitia, ou faltava tempo para entrar em maiores compreensões. Seguindo os padrões seria mais fácil de organizar depois, preenchendo os relatórios que surgem às pressas.

Se ela começasse um diálogo, poderiam aparecer muitos assuntos relevantes para as duas: gênero, retificação de nome, situação psicológica e corporal, identidade privada e pública. Porém, as circunstâncias não as aproximaram. E Carmen, querendo mais que nunca sair daquela situação, apenas respondeu: “eu espero no saguão? Ou aqui?”

A enfermeira perguntou questões gerais da ficha incompleta, resolvidas com um simples “sim” e encaminhou a paciente direto à triagem, para medir a pressão e a febre.

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