A volta ao mundo de Denise
"Mulata bossa nova/caiu no HullyGully/e só dá ela!"… Os versos de João Roberto Kelly, originalmente destinados a Vera Lúcia Couto, primeira miss negra brasileira, lembram um pouco da história e da figura de Denise Melo, de 49 anos. A agente comunitária de saúde da Clínica da Família Souza Marques, em Madureira, já foi Denise Ryan, Denisinha, Denise Bumbum de Ouro ou ainda Denise Shortinho. Do concurso Miss Brasil Afro aos bares malfamados de Córdoba, na Argentina, Denise relata uma trajetória cheia de altos e baixos, rodando o mundo fazendo shows de mulata.
O começo
Denise começou sua carreira artística com 15 anos, como bailarina clássica. A carreira, no entanto, logo foi abandonada, pois sua família não podia pagar pelos custos dessa empreitada. “Além disso, há alguns anos atrás, era muito difícil as pessoas apoiarem uma negra no balé clássico. Quem iria acreditar que eu seria uma nova Mercedes Batista?”, afirma, referindo-se à primeira bailarina negra do Teatro Municipal do Rio de Janeiro.
Como mulata de show, as perspectivas eram outras. Ainda com 15 anos, recebeu um convite para fazer apresentações no Japão. Foi preciso muita insistência para que sua mãe assinasse uma liberação, no Juizado de Menores, para ir à “terra do sol nascente”. Ali, ganhou uma nova família: por ser a caçula do grupo de mulatas, ritmistas e intérpretes, a vigilância sobre ela acontecia 24 horas ao dia.
“Ter ido ao Japão foi uma satisfação enorme. Não tive nenhum choque cultural, muito pelo contrário, fiquei maravilhada com a cultura japonesa. O país é super desenvolvido, não se vê mendigos pelas ruas, não se vê lixo exposto e o brasileiro lá é muito querido e bem tratado”, conta, lembrando também de um momento triste: a visita às cidades de Hiroshima e Nagasaki, atingidas por bombas atômicas na 2ª Guerra Mundial. “Mesmo após tanto tempo do atentado, pude sentir o sofrimento e a tristeza daquele lugar”, lamenta. Até hoje, Denise diz levar um pouco da cultura e da culinária japonesa para sua vida.
Volta ao mundo
O Japão foi apenas a primeira parada de anos de viagem ao redor do mundo. Ela conheceu a Alemanha (na época dividida entre Oriental e Ocidental), Itália, Marrocos, Estados Unidos, Colômbia e Argentina – onde morou por três anos. “Gostei muito do Japão, da Argentina e dos Estados Unidos. Na Colômbia, me senti desconfortável com o tráfico, muito exposto, e com a sujeira. De qualquer forma, em todos os países que passei fui muito bem tratada, não sei se por conta do meu carisma ou da minha beleza”, brinca Denise. Sempre que podia, Denise voltava ao Brasil para visitar a família ou realizar trabalhos.
Prostituição
Já maior de idade, Denise enfrentou o que ela acredita ser o dilema da sua vida: a prostituição. Ela trabalhava em uma boate perto do cais do porto na região de Córdoba, Argentina, onde após os shows, servia bebidas e fazia programas. “Era uma casa velha, com vários quartos. Quando tudo acabava, eu estava tão bêbada que me sentia suja e envergonhada. Ao mesmo tempo, vinha a satisfação de ter feito dinheiro e poder mandá-lo para a minha mãe aqui no Brasil”, conta.
Apesar de algumas experiências traumáticas, ela lembra que tinha consciência do que estava fazendo. “Nós estávamos cientes de tudo e com isso respondíamos pelos nossos próprios atos. Quando pensona prostituição, a profissão não é indigna. Eu tinha o direito de escolher se ia fazer ou não. A necessidade em ajudar a minha família falou mais alto”, conta. Foram nove anos de prostituição que não são escondidos de suas filhas, Ana Letícia, de 16 anos, e Ana Luiza, de 8. “Eu não escondo nada delas nem dos meus familiares. Precisamos ter uma relação de amizade e de cumplicidade com nossos filhos”, diz, emocionada.
Fama
Na década de 80, Denise já era bem conhecida no meio carnavalesco. O apelido “Denise Bumbum de Ouro” veio de J. Brito, conhecido fotógrafo de mulatas. Como Denise Ryan (seu nome artístico), ela trabalhou com outros grandes nomes do carnaval, a exemplo de Ivon Curi e João Roberto Kelly. Ela lembra que este contato lhe promoveu auto-estima eperseverança.
“No carnaval e durante o ano, eu fazia shows com a escola de samba Mangueira, minha escola de samba do coração. Também já desfilei na São Clemente, Vila Isabel e Portela”, conta Denise, lembrando que seu tio Rodolfo é um dos compositores do samba campeão “Kizomba, festa da raça”, da Vila Isabel.
Além de suas raízes carnavalescas, sua beleza também a levou mais uma vez longe. Em 1988,Denise ganhou o prêmio Miss Brasil Afro na etapa do estado do Rio e, posteriormente, na etapa nacional. Em 1989, participou do júri do concurso.
Apesar de todas as coisas boas que a fama trouxe, ela lembra às novatas que é preciso manter a cabeça no lugar. “Entre dez mulatas que vão pra fora em busca de melhores condições de vida, uma ou duas, no máximo, conseguem. Você só serve quando está jovem, com a pele bonita e corpão. Se enrugar um pouquinho ou ganhar peso, você não serve para ser mulata. Se é isso o que você quer, invista, mas não faça da vida somente um show. Se estruture e se prepare para o futuro”, aconselha.
Denise acredita que a valorização da mulata e a exposição do corpo é positiva. “A beleza negra hoje no Brasil está em alta. O negro passou a ter um espaço, um valor. A exposição na mídia é linda, glamorosa e super natural. Se eu ainda tivesse o corpo de antes, também o mostraria”, exalta.
Retorno ao Brasil
Denise só reconheceu que era hora de parar em 1995. Para ela, toda mulata de show sonha em viajar e, ao retornar, investir sua verba em bens e estudo. Com ela não foi diferente. Logo tratou de fazer um curso técnico de Enfermagem, área na qual passou a trabalhar. Ocasionalmente, no entanto, ela ainda fazia trabalhos com o músico Amir Saint-Clair. Nesta época, se tornou mãe.
Criada em Copacabana, hoje Denise é moradora de Madureira e se diz feliz. “Passei por muitas coisas na vida e hoje, como agente comunitária de saúde, elas me ajudam a ser tolerante e a valorizar coisas que antes eu não me dava conta”, diz. Na clínica em que trabalha, é admirada por sua história pelos colegas, que a chamam de “Denise Shortinho”.
Ela conta não ter mais muito envolvimento com o mundo do samba, a não ser nos encontros anuais com suas antigas colegas de show. “Rola muitos sentimentos ao contar minha história. Levo algumas tristezas, mas também muitos aprendizados, como meu desenvolvimento artístico e pessoal. Faria tudo de novo igual, ou até melhor”, resume.