Na Vila Cruzeiro, o resgate pela arte
Nos muros das ruas e vielas da Vila Cruzeiro, na Penha, poucos são aqueles que não reconhecem o traço de Ângelo. Foi a vocação artística, e os sacrifícios dos avós, que permitiram que o rapaz tomasse rumo na vida. O artista autodidata deve sua trajetória ao apoio de amigos e familiares, pois não teve exemplos onde se espelhar. “Fui me descobrir artista aos 31 anos” relata, referindo-se à consciência tardia que adquiriu sobre o valor do seu trabalho. Hoje com 32, Ângelo Campos sente orgulho em dizer que se sustenta, há vinte anos, graças a suas bombas e pincéis. Além dos muros de sua favela, seus desenhos enfeitam camisas, telas e equipamentos municipais, como na Praça do Conhecimento, no Complexo do Alemão.
No entanto, muita coisa podia ter dado errado na vida do artista plástico. Retrato do cotidiano de violência da Vila Cruzeiro, onde cresceu, seu percurso foi repleto de dificuldades – e de exercícios de superação. Os primeiros obstáculos se ergueram quando tinha apenas 12 dias de vida, com o assassinato do pai. “Era um criminoso comum e tiraram sua vida por alguns ajustes de contas” relata. Sua mãe, muito nova na época dos fatos, entregou o menino aos avós maternos e se ausentou durante boa parte da sua educação.
Da primeira infância, Ângelo guarda lembranças sombrias: o peso da tragédia que pairou sobre sua família; a situação conturbada da favela, onde tráfico e a violência caminhavam lado a lado; as dificuldades financeiras dos avós, Zeni Simão e Romualdo Simão Liberato, que o sustentaram a duras penas. Na escola, seus amigos às vezes perguntavam por sua mãe, o que o constrangia: “Não lembro do que era dia dos pais, dia das mães, isso só vim descobrir depois”, recorda.
O primeiro contato com artes visuais veio aos cinco anos, quando os avós começaram a incentivar o menino, comprando lápis de cor e livros para olhar e desenhar. “Até o início do ensino fundamental eu era um ótimo aluno, mas com o passar do tempo não queria mais estudar e só desenhar! Isso me prejudicou muito na escola”, pondera. No entanto, ao desenvolver esta habilidade, Ângelo logo percebeu que podia traçar seu caminho de vida. Aos sete, fez seu primeiro grafite. “Os moradores gostavam do meu estilo, me parabenizavam, então eu disse para mim mesmo: talvez eu possa aproveitar meu talento”.
Muito cedo, o menino também teve consciência dos sacrifícios que representava o seu sustento. Seu avô trabalhava como vigia em um condomínio, e o salário cobria apenas as despesas básicas da família. Com 12 anos, compreendeu que podia ganhar dinheiro com sua arte. Começou pintando em camisetas os desenhos que lhe pediam. Embora não tirasse muito, era uma ajuda para casa. “Acreditava na minha capacidade”, reconhece, apesar de ter sofrido, ao longo da adolescência, com a falta de incentivo para prosseguir nesta atividade.
O desvio pelas drogas
Até os 17 anos, o rapaz cresceu vigiado de perto pelos avós, temerosos que más frequentações o levassem a reproduzir os passos do pai. Mas uma sucessão de empregos negados pelo fato de ser reservista do Exército, e a urgência de ajudar financeiramente os avós, o levaram a optar por uma oferta de trabalho no tráfico. “Eu entrei pelo lado emocional” conta Ângelo.
A entrada no mundo das drogas alertou família e amigos. “Se você é organizado, você corre o risco de crescer muito rápido”, explica o artista. Sua boa educação e seu perfil estruturado lhe garantiam uma rápida ascensão. Durante 1 ano, muitos acreditaram que ele seria só mais uma vida perdida para esta guerra que assola as favelas. Outros, ao contrário, incentivaram o adolescente a reconhecer que aquele não era seu lugar. “Lembro que meus amigos falavam que eu era um rapaz bom de coração e na vida do crime eu não iria ficar. Então, compraram tintas e mandaram eu fazer vários desenhos pela favela” relembra. A iniciativa permitiu que seu trabalho fosse mais reconhecido ainda dentro da comunidade. Perambulando pela favela, Ângelo passou a retratar imagens que fizessem as pessoas refletir sobre seu dia-a-dia lá dentro. Também desenhava ícones como a igreja da Penha ou pessoas que tinham alguma representação para a favela.
Semeando novos talentos
O retorno a esta atividade ajudou a criar novas perspectivas de futuro. “Foi uma aposta que eu fiz com minha vida” afirma Ângelo, relembrando o risco que tal escolha representava, sem nenhum exemplo de artistas bem-sucedidos a sua volta. “A única inspiração para mim foram os moradores da favela onde moro”. Hoje, Ângelo é conhecido pelos moradores dentro e fora de sua comunidade, e acredita que seu exemplo de vida possa ser fonte de inspiração para novos artistas mirins da Vila Cruzeiro, ou de outras favelas. A cada trabalho que faz, procura envolver moradores. Quando passa pelas ruas, e lhe perguntam se alguma obra é sua, costuma responder: “é minha, mas com ajuda de outros futuros artistas”.
Ângelo consegue hoje viver e sustentar seus 4 filhos com seu trabalho artístico. Se guarda más lembranças do começo, sabe que agora parentes e moradores da favela o têm como referência e o apóiam em todos os trabalhos que produz. Entre os mais marcantes, Ângelo cita um mural de 1.000 metros quadrados na entrada da favela da Grota, no Alemão. Trata-se de sua maior realização. A encomenda pedia que retratasse o tema “felicidade”. Ele desenhou um menino em quebra-cabeça, onde uma peça falta na altura da cabeça. “O ser humano nunca é completo e está sempre em busca da felicidade, que é algo momentâneo” explica o artista. “Quando passa, o ser humano sai novamente buscando algo para acrescentar em sua vida, e viver outro momento feliz”.