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A lenta recuperação da Cracolândia

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Fotos: Virginia Rigot-Muller
“Quem escolheu a vassoura, ganhou o respeito da sociedade e mais tranquilidade com a polícia” resume Antônio Carlos Nascimento, 45, referindo-se ao projeto De Braços Abertos, que completou um mês no último dia 14, em São Paulo. Antônio é um dos 350 usuários de crack que aceitou trocar o seu barraco, construído na rua Helvétia, por uma vaga no programa da Secretaria de Saúde do município, que prevê hospedagem, comida e uma atividade remunerada de zeladoria urbana na chamada “Cracolândia”.
Para quem conhecia a área, que fica no centro de São Paulo, a poucos metros da estação da Luz, existe sem dúvida um antes e um depois. A pequena favela que ali se instalara foi removida e a quase totalidade das 500 pessoas que viviam no entorno, realocadas nos 7 hotéis do programa. O “fluxo”, como é conhecido o “mercado livre” do crack, continua ativo, mas atrai menos de uma centena de pessoas por dia – contra 1000 a 1500 nos períodos mais sombrios do bairro.
Em comum, a miséria social
 Antônio prefere ser chamado de MC Kawx: ele é rapper, nascido e criado em São Paulo. Sua trajetória de vida acompanhou os altos e baixos da história do país. A causa de seu declínio, ele a situa nos idos dos anos 90, quando a oficina mecânica paterna, que contava com 15 funcionários, sucumbiu ao plano Collor. Depois da falência, seguida do súbito falecimento do pai, a família mudou-se para uma favela da Zona Norte. Antônio teve que largar a faculdade de Ciências Politicas, já no 4º semestre, para trabalhar. A partir daí, sua vida desandou. Com várias passagens pela polícia, por porte ou tráfico de drogas, chegou a ser condenado, ao todo, a 19 anos de prisão – e a consumir uma média de 20 pedras de crack por dia.
O rapper, como boa parte dos beneficiários do programa, não largou a droga, porém passou a ter um uso controlado. Este é o foco da política de redução de danos projetada pela Secretaria municipal de Saúde. “Eu não estou acreditando que uma pessoa que passou 20 a 25 anos usando drogas vai deixar de usar do dia para a noite” pondera Myres Cavalcanti, Coordenadora de Saúde Mental, Álcool e Outras Drogas, na Secretaria de Saúde. “A redução é um processo, onde as pessoas vão reduzir, deixar de usar, recair, voltar, voltar a tratar… A gente acredita que este é o caminho”.
Para o psiquiatra José Carlos de Arruda, coordenador da equipe local do De Braços Abertos, o ponto comum entre os frequentadores da Cracolândia é sua situação de rua. O médico classifica os dependentes em três grupos: aqueles que conseguem manter sua vida familiar, social e profissional apesar do uso regular de drogas ; aqueles que procuram ajuda para não deixar a dependência dominar sua vida ; e aqueles que perderam o controle, e terminam em situação de exclusão social. Os dependentes da Cracolândia pertencem a este último grupo.
“A Cracolândia é a situação final de um processo de degradação: miséria social, falta de vínculos familiares, educação precária… A coisa vem vindo, vem vindo, até chegar neste ponto” avalia por sua vez o pastor Daniel Chechio, coordenador da Rede Social do Centro, uma rede de entidades laica que fomenta ações de desenvolvimento social e de cidadania desde 2010 na Cracolândia.

Kate (37 anos) e Robson (38 anos), que preferem não revelar sua identidade, ilustram este lento processo de exclusão comum aos usuários da praça. O casal, junto há 16 anos, perdeu sua casa em Parque Taipas por conta das obras do Rodoanel. Desde então, vivem de uma bolsa-aluguel. De casa de parentes em hotéis, acabaram comprando um barraco na Cracolândia. A dependência veio com a miséria. Dos quatro filhos do casal, dois morreram no parto, em decorrência do abuso de drogas. Kate hoje aguarda o quinto filho, porém, traumatizada, largou o crack de vez. Ambos aderiram ao programa. “Vou trabalhar, volto, almoço, janto, durmo. Aqui não dá pra ficar na rua, se ficar a polícia mexe com a gente” conta Robson que, ao contrário de Kate, ainda não conseguiu deixar o vício: “Sonho em montar minha casa e parar de ficar fumando este negócio; essa vida não é futuro pra ninguém”.
Nem tudo é internação
A equipe de agentes de saúde, psicólogos e assistentes sociais do De Braços Abertos ajuda o casal em várias frentes : acompanhando a gestação de Kate, sondando as aptidões profissionais de Robson, ou ainda dando suporte administrativo para o apartamento que a Dersa, a empresa estadual de desenvolvimento rodoviário, deve liberar para a família. O objetivo é dar aos beneficiários as condições mínimas para reorganizarem suas vidas, até devolvê-los progressivamente a seus bairros de origem. “Não adianta tirar as pessoas de lá. Para reinseri-las no seu histórico de vida, é preciso fazer todo um acompanhamento” reforça Myres Cavalcanti.
Para este fim, o trabalho em rede é fundamental. O projeto envolve 15 secretarias, além de representantes da sociedade civil. O suporte intersecretarial varia em função das demandas do usuário, que vão de exames médicos e ajuda terapêutica até auxílio para tirar carteira de trabalho, RG, INSS… “É preciso que as entidades que faltaram lá atrás venham novamente” afirma o pastor Daniel que também mobiliza, através da sua ONG, serviços públicos para atenderem a populações carentes como as da Cracolândia.
Segundo José Carlos, o sucesso do processo está no respeito do livre arbítrio e das motivações individuais de cada um. “Nós tiramos as pessoas da rua pela vontade delas; quem quiser ficar na rua, pode.” O equipamento municipal onde acontecem as atividades abriu as portas em julho de 2013, em plena cena de uso, para sondar as necessidades básicas dos usuários do crack. Lá, são servidas sopas quentes e disponibilizados kit de banho e de lavanderia para qualquer um, beneficiário do programa, ou não. A equipe estima em 134 o número de pessoas que frequentam o espaço sem fazer parte do programa remunerado.
Um deles é Jackson da Silva Custódio, 24 anos. Desde a abertura, ele costuma visitar a sede do De Braços Abertos às tardes, saindo do trabalho, enquanto aguarda a abertura do seu albergue noturno. Jackson não quis entrar no programa, mas procurou a ajuda dos assistentes sociais para achar um lugar onde dormir, indicações de trabalho, e pôr em dia sua documentação. O jovem já tinha tentado largar a droga no passado, quando se internou em uma comunidade terapêutica evangélica por 3 meses. Lá, só era permitida a visita de familiares – o que ele não tem. Assim que saiu, retomou sua antiga rotina e caiu nas drogas de novo. Hoje, com a vida tomando rumo, o rapaz alimenta sonhos de estudos, pensa em fundar uma família, e não toca mais no crack. “Parei totalmente vai fazer uns sete meses, passo no meio do “fluxo”, tô tranquilo”, garante.
Um programa em construção
“Na verdade, tudo o que eles precisavam, era de um pouco de atenção” avalia Emaraísa Ribeiro, 47, uma das monitoras que acompanha a varrição das ruas e praças do bairro, com um grupo de 20 beneficiários.  A atividade, de 4 horas, é remunerada 15 reais por dia, fim de semana incluso. Em seguida, o programa oferece 2 horas de qualificação em cidadania e direitos humanos. A tarde é livre, mas a tenda central acolhe atividades diversas, além de contar com a presença de agentes de saude e assistentes sociais.
Segundo a prefeitura, o programa custa aos cofres públicos 1086 reais por beneficiário – valor que comprende a remuneração, as refeições em um restaurante popular e a hospedagem nos hotéis. O número de beneficiários varia entre 350 e 360, em função de desligamentos (até então, provocados pelo retorno nas famílias) e novas adesões. “É um plano vivo, está sempre em mudança, avaliações e alterações” explica Myres Cavalcanti.
Em fevereiro, a equipe estendeu o horario de atendimento da tenda central das 17h para às 22h, para aumentar a oferta recreativa que ajuda a manter os usuários longe do crack. O período é assumido pelas secretarias da Cultura e do Esporte e Lazer, também responsáveis pelas atividades da tenda aos finais de semana. Em março, junto com a secretaria do Trabalho, será lançado um plano de capacitação realizado a partir do histórico dos usuários, para melhor acompanhá-los em sua reinserção profissional.
O projeto também identificou novos subgrupos – sete familias e 15 gestantes, que receberão um atendimento mais específico – e novas frentes de atuação, como o atendimento odontológico, uma urgência para muitos. É caso a caso que vai se desenhando a oferta de serviços. “Quem olha a Cracolandia acha que aquilo é um bolo de gente desarticulado ; não é. É uma comunidade, e é importante entender isto” refoça o pastor Daniel, cuja intermediação foi fundamental na fase de aproximação da equipe municipal. “O morador em situação de rua é extremamente desconfiado” completa.
Um mês depois do lançamento das ações, as expectativas ainda são grandes entre os usuários, assim como as reticências. “Só vou ter a certeza (que foi bom) depois da Copa”, desafia Jackson, incrédulo quanto à perenidade do projeto. Já MC Kawx, que projeta tornar-se assistente social, acredita no projeto pela sua dimensão participativa. “Funcionou porque botaram em prática a nossa maneira de sair do crack” comemora.

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